Entre os últimos dias de março e o raiar de abril de 1964, após turbulento processo político encabeçado pela extrema direita brasileira, que se escorou nas Forças Armadas, forçando uma estratégica movimentação das tropas, o presidente João Goulart foi deposto.
Em todo o Brasil focos de resistência se estruturaram e o combate aos generais governantes se consolidou, tendo em suas fileiras a expressividade de intelectuais renomados, políticos compromissados com os interesses do povo e principalmente jovens idealistas.
Em Porto Nacional, celeiro de cultura nacionalmente reconhecida, muitos de seus filhos, quase todos nascidos dentro das cercanias limítrofes que mais tarde se consolidaria ficticiamente como Vila Xurupita, foram vitimas deste conflito, dentre eles Pedro Tierra, Atos Pereira, Professora Dagmar, Cristóvão Teixeira, Getúlio Matos, Edmilson Pereira, que, por definitivo, tiveram suas vidas transformadas.
Não se sabe se pela expressiva capacidade intelectual da coletividade portuense, que imediatamente se posicionou contra o Golpe Militar de 1964, ou se por ser este município, na época, estratégico geograficamente e por isso membro do Conselho Militar das Américas, responsável pela elaboração do Tratado da Rota Aérea Internacional, o certo é que tanto o Exército, quanto a Aeronáutica, basearam, por muito tempo, centenas de seus homens no aeroporto local da cidade, oportunidade em que agiam dissimulados, camuflados em suas intenções e assim se portavam simpáticos para com os portuenses, criando com isso uma relação falsa de respeito e até de cordialidade, influenciando negativamente muitos jovens da localidade, desavisados daquela impositiva realidade ditatorial.
A chegada dos militares do regime golpistas a Porto Nacional, liderados por experientes pilotos de caças, na função de patrulha, além de comandantes de aviões de combate e de helicópteros, atiçaram a imaginação desses jovens sonhadores, que passaram a planejar uma ligação apaixonada com novas esperanças a serem alcançadas. Estes, oriundos das principais famílias portuense, passaram a desenhar mentalmente um futuro promissor para suas vidas, gravitavam pelo território da ficcional Vila Xurupita, aglomerado humano formado pelo largo da Catedral Nossa Senhora das Mercês e suas artérias viárias convergentes.
O ápice desse período se deu em janeiro de 1967, quando o grupamento de paraquedistas da Aeronáutica fez uma serie de exercícios nos céus de Porto Nacional. Vários desse militares desceram, com suas asas de lona, na Pracinha das Mercês, futuro “QG da Vila Xurupita”, e na Praça do Centenário. Nas duas localidades a tropa já era aguardada por dezenas de crianças e adolescentes, que a partir daquele momento passaram a planejar os próprios voos e pular com seus “paraquedas improvisados”, como sombrinhas e guarda-chuvas, além de outras invencionices moldadas com lençóis, cobertores e toalhas. Todo este aparato de tecido atado improvisadamente nas quatro pontas com cordas, arames e até barbantes.
As duas principais torres da Catedral Nossa Senhora das Mercês e um rochedo gigante, lambido pelas águas do rio Tocantins, seriam as rampas de partidas das traquinagens aéreas dos xurupitenses. Aprisionando as correntes daquela caudalosa aquavia, o Terceiro Paredão se apresentava imponente aos olhos de todos, que sem nenhuma outra referência, enxergavam nele uma altura abismal. Não muito diferente o campanário da igreja avançavam em direção ao céu, desenhando um “Altar de Perra Canga”, segredando sinos, morcegos e histórias. Dali, daqueles dois pontos estratégicos e antagônicos, crianças e adolescentes, daquela secular região de Porto Nacional, queriam imitar os opressores de 64, pois enxergavam em suas ações de ditadores uma outra forma de liberdade, para eles a liberdade enraizada nas asas do vento.
No dia 27 de fevereiro de 1967, sem nenhuma explicação plausível, foi anunciada a chegada do presidente da República, General Humberto Castelo Branco a Porto Nacional. Antes dele, cerca de 20 paraquedistas fortemente armados, coloriram de verde o céu portuense e desceram no aeroporto local com a missão de promover a segurança daquela autoridade. Os olhos das crianças e adolescentes paralisados pelas ruas, ruelas, becos e ladeiras da cidade, voltaram a brilhar e novas ideias começaram a tomar corpo, principalmente na cabeça de Dominguim Boy, que queria voar com suas próprias asas, e Eteraldo “O Malvado”, pretendente saltar livre por entre as nuvens.
Naquele período de chumbo, sangue, lágrimas e desesperanças, os anos corriam na velocidade da busca das liberdades cidadãs, e por isso, após meses incontáveis, dedicados a estudos aprofundados, Dominguim Boy, que liderou um projeto secreto para voar, preparou-se paciencioso para imitar os pássaros. Durante longas noites ele trabalhou na construção de um par de asas para que pudesse vagar pelas nuvens. Num “laboratório científico” improvisado, segredado por entre frondosas mangueiras, que sombreavam monturos e criações domésticas, que davam vida e burburinho àqueles largos quitais dos casarões da secular Rua do Cabaçaco, foi moldado um ousado e visionário projeto de liberdade.
Dominguim Boy, assessorado por seus mais próximos amigos, manuseou materiais caseiros, como arames, barbantes, tecido, penas de aves e algumas pedras que, segundo o mesmo, era para formar o contrapeso do seu corpo e desviar o balanço do pé do vento. Já Eteraldo “O Malvado”, que era um rapaz estranho, solitário e perverso, pois capturava pássaros em alçapões e arapucas e, em seguida, usando uma tesoura, cortava as duas pernas das minúsculas aves e as soltava num voo de encontro à morte certa, queria simplesmente ser o primeiro a saltar das torres da Catedral Nossa Senhora das Mercês, usando uma das sobrinhas de sua mãe.
E ele conseguiu. Furtivo e rasteiro Eteraldo “O Malvado” driblou “Seu Manel”, mítico guardião do mais emblemático tempo católico da Região Norte do Brasil, e no inicio de uma noite serena ele executou seu salto. Como era esperado por todos que conheciam as leis da física, a sobrinha fechou-se ao contrário e aquele pretendente a paraquedista despencou-se desprotegido, atingindo o solo com extrema violência, quebrando gravemente os pés, tornozelos e joelhos, o que obrigou seus pais a procurar tratamento especializado em Goiânia, onde o jovem portuense foi acometido por uma grave infecção bacteriana, o que levou a amputação de suas duas pernas. Quando a noticia chegou a Porto Nacional, muitos que o conheciam lembraram dos minúsculos pássaros com as pernas cortadas por ele.
O acidente de Eteraldo “O Malvado” virou tema de acalorados debates familiares, obrigando pais a alertar professores e estes a oficializar suas preocupações ao clero local. A tragédia anunciada obrigou os padres dominicanos a lacrar, com cadeados, as várias portas de acesso às principais torres da Catedral Nossa Senhora das Mercês. Precavidos, os religiosos franceses também aumentaram o número de seminaristas, exercendo o papel de vigias, na tentativa de vetar a escalada das paredes da igreja por alguns mais afoitos que elegeram o telhado daquele “Altar de Pedra Canga” como pista de saltos para voos.
Com esse impedimento ocorreu então a definitiva migração, em massa, desses “ícaros de primeira viagem”, para o Terceiro Paredão. Ali, todos os finais de semana, durante um longo tempo, ocorreram saltos de todos os tipos. Sombrinhas, guarda-chuvas, cobertores, toalhas de mesa, lençóis com as pontas amarradas por cordas, arames ou barbantes, coloriam o céu sobre o rio Tocantins, que em suas águas recebiam um especial grupo de sonhadores. Na “Semana da Asa” de 1974, as ribanceiras do Porto da Manga pareciam um formigueiro, e sempre no entardecer, num canto observando o burburinho, Dominguim Boy media e pesava o tempo, na expectativa do seu voo, que aconteceria na manhã do dia de domingo, final das celebrações que homenageavam aos aeronautas brasileiros, quando suas “Asas de Pedras” estariam prontas.
Ao raiar daquele dia histórico, após os ajustes finais no par de asas, construídas com tecidos, penas de aves, arame, barbantes e algumas pedras e a realização dos últimos encaixes no corpo, Dominguim Boy, sempre ladeado por seus principais assessores, dentre eles Dilmar Aires, Gá, Torres, Mercês Porroma, Dídimo, Nego Pacari e Capanga, partiu rumo ao Porto da Manga. Ele ia voar. A notícia correu a cidade e muitos curiosos invadiram as ribanceiras do rio Tocantins, próximas ao Terceiro Paredão, para presenciar o que com certeza se tornaria um acontecimento impar. E lá, daquele rochedo edificado pelas mãos da natureza, um corpo esguio, miúdo, de pele escura e cabelos crespos na moda “Black Power”, abriu os braços, moldurados por aquelas asas de sonhos e se lançou no vazio.
Ali, naquele rochedo secular, lambido pelo vento e pelas límpidas e bravias águas do rio Tocantins, se encontravam dezenas de admiradores daquele “jovem cientista”. A pequena multidão, organizada pelo respeitado Soldado Odonel, que impunha respeito a partir de sua barriga descomunal, era composta por adolescentes como os irmãos Cristóvão, Paulo, Pedro e Bira, além dos curiosos Honorinho, Vando e Gilmar, Teinha, Vanderlei, Neurimar e Lorivan, Tuzu, Pacau, Nem Capeta, Gabriel e Nego Tata, dentro outros. Naquele instante, um sem número de olhos arregalados focaram o menino-pássaro que abria e fechava suas “Asas de Pedras”, plainando suave no ar, fazendo volteios elegantes e impossíveis para os que não ousaram sonhar. Após um incontável tempo, Dominguim Boy abraçou as nuvens e em seguida pousou suave, no que foi ovacionado por aquela massa de admiradores. Assim era a Vila Xurupita.