Por Luiz Antonio Alves de Souza
Em uma passagem de “O Nome da Rosa”, magistral ficção de Umberto Eco, o aprendiz, Adso de Melk, indaga o protagonista, Guilherme de Basckerville, o que este mais temia. Surpreendente resposta: “a pressa”.
Paralelamente, o inquisidor, adicionado à legação papal, agia com urgência para impedir a possibilidade de algum consenso entre aquela e a Legação de Frederico da Baviera a respeito do processo de escolha do imperador romano-germânico. Conseguiu gerando fogueiras, nas quais foram queimados hereges.
Mais de uma vez já se disse que “a vida imita a arte”. É essa a imitação que se quer evitar quando se pleiteia que o projeto de lei, que modifica substancialmente o vigente Código Civil Brasileiro, promulgado em 2002, seja processado no Parlamento como um projeto de código, possibilitando ampla discussão com a sociedade civil, notadamente por seus setores acadêmicos e profissionais do direito, além, é claro, de ser submetido às várias comissões temáticas ligadas à vastidão das matérias a serem reguladas, ou a terem sua regulação modificada.
Entendeu-se necessário gerar propostas de alterações do direito comum, do direito do cidadão frente ao cidadão. Talvez porque, apesar de ter sido promulgado em 2002, o projeto original do Código Civil é bastante anterior, originado da redação de juristas capitaneados por Miguel Reale. Contudo, a redação foi atualizada antes de ser discutida e votada pelo Congresso Nacional. A velocidade das transformações sociais e tecnológicas certamente poderia justificar esta ou aquela modificação, episódica, mas não na quantidade proposta.
Experiência estrangeira
Rápida mirada na experiência estrangeira mostra a perplexidade de o Código de 2002, tido como grandemente inspirado no Código Civil Italiano de 1942, não encontrar similitude nas reformas deste. Em que somos mais perspicazes que nossos inspiradores peninsulares, que justifique essa proposta de reforma? Os italianos não produziram qualquer proposta como essa em curso no Senado do Brasil.
Aliás, poucos anos passados, no Brasil surgiram duas propostas de adoção de um novo Código Comercial, pois o nosso vetusto Código Comercial, de 1850, foi absorvido pelo Civil, tal qual ocorreu na Itália, em 1942. Até hoje, ou seja, decorridos 83 anos, a doutrina jurídica comercialista, naquele país, segue seu caminho sem propor um novo Código Comercial. Entre nós, felizmente, tais propostas foram rejeitadas (sem embargo de a proposta ora visada altear significativamente a disciplina empresarial contida no Código Civil).
Spacca
A chamada modernização do Código Civil Alemão, que alterou significativamente o direito das obrigações, foi iniciada em 1981, passou por alguns projetos e redações, processo que foi interrompido e retomado, até entrar em vigor em 1º de janeiro de 2002. O Código Civil Alemão (BGB) havia resultado de um processo legislativo que tramitou entre os anos de 1874 e 1896.
Reforma requer discussão ampla e democrática
Com essas reflexões não se quer — longe disso — propugnar um longo processo de tramitação do projeto, a exemplo do Código hoje vigente. O pleito é de tempo proporcional a uma discussão ampla, democrática e participativa, que resulte em um consenso possível, suficientemente maduro. Tempo proporcional, o que se pede lembrando que Miguel Reale inseriu, em seu precioso “Lições Preliminares de Direito”, a definição de Dante: “O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”. Não se pode cogitar de alteração legislativa que não seja para conservar a sociedade, razão suficiente para que seja devida e suficientemente debatida.
Por óbvio, não se pode confundir a pretensão de que o projeto seja debatido com o desejo de seu arquivamento, proposta feita por opositores da reforma, sem embargo de que é tão legitima quanto a pretensão de que seja adotado. Muito menos ver na adequada tramitação críticas à comissão de redação, no seu conjunto ou a dela integrantes, isoladamente. A comissão certamente não se opõe a debater a proposta que fez.
Encerra-se com uma anedota histórica, muito conhecida dos juristas. Napoleão Bonaparte, ao tomar conhecimento de decisões judiciais aplicando preceitos do Code Civil, teria dito: “On detruí mon Code”. Como se sabe, o Código Civil Francês, de 1804, portanto com mais de 200 anos de existência, também é denominado “Code Napoleon”, em referência ao seu propugnador. Sabendo que o imperador francês participou, inclusive, de debates sobre o então projeto, torna-se compreensivo que ele, o que aqui se diz parodiando Erasmo Carlos, “precisasse de um código para chamar de seu”.
Na República Federativa do Brasil, não soa exagerado pretender que o Estatuto da Vida Civil seja reformado com a participação de todos os que se interessarem em fazê-lo, e que o Parlamento, ao discuti-lo e votá-lo, tenha tido tempo suficiente para amadurecer a decisão, proporcionalmente às dimensões da proposta.
Luiz Antonio Alves de Souza - é advogado, graduado pela USP, diretor administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e ex-secretário-adjunto da Segurança Pública do Estado de São Paulo (1995-1998).