Congresso contra o povo
Na madrugada lúgubre da quarta-feira 30, quando dos rostos dos brasileiros ainda vertiam as lágrimas do desalento e do pesar profundo pelos seus heróis mortos, a Câmara dos Deputados terminou de enxovalhar o que restava de sua reputação – se é que ainda lhe sobrava algo. Sem corar a face e em meio a gargalhadas de deboche, parlamentares eleitos para representar e atender aos desígnios dos que em neles depositaram a esperança do voto atingiram o apogeu da ousadia. Dando de ombros e pouco se lixando para o povo, rejeitaram as medidas que serviam de alicerce ao pacote anticorrupção e aprovaram uma emenda ampliando as possibilidades de punição a juízes e procuradores da Lava Jato, hoje já submetidos às leis de controle do Judiciário vigentes.
No dia seguinte, apoiado por senadores de diversas colorações partidárias, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que viria a se tornar réu por peculato horas depois, ainda tentou votar a toque de caixa o indecoroso projeto. Vergonha é pouco para descrever o que se viu no Congresso nos últimos dias. Há mais de um século, um dos mais importantes escritores portugueses da história, José Maria de Eça de Queiroz, cunhou uma frase que se ajusta com perfeição aos nossos tempos: “Políticos são como fraldas. Devem ser trocados de tempos e tempos. E pelo mesmo motivo”.
AS DEZ MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO
Propostas originais:
1. Aplicação de testes de integridade a agentes públicos
2. Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos incompatível com seus rendimentos
3. Aumento das penas e crime hediondo para corrupção de altos valores
4. Maior eficiência dos recursos no processo penal, como evitar recursos protelatórios, e mudanças no habeas corpus
5. Maior celeridade nas ações de improbidade administrativa e possibilidade de Ministério Público assinar acordo de leniência nesses casos
6. Mudanças no sistema de prescrição penal.
7. Ajustes nos artigos que tratam das nulidades dos processos penais, dentre eles a possibilidade de uso de prova ilícita
8. Responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa dois
9. Prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado
10. Recuperação do lucro derivado do crime
COMO FICARAM APÓS AS MUTILAÇÕES
1. Testes de integridade continuaram retirados
2. Rejeitada a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos
3. Mantém a corrupção como crime hediondo com punição maior que dez mil salários mínimos
4. Mantidas as mudanças nos embargos e rejeitadas as de habeas corpus
5. Rejeitadas mudanças sobre improbidade, como o acordo de leniência pelo MP
6. Rejeitado artigos que mudavam as regras de prescrição
7. Mantida rejeição do uso da prova ilícita
8. Mantida a criminalização do caixa dois
9. Mantida rejeição da prisão preventiva para evitar a dissipação do produto do crime
10. Rejeitado o instrumento para perda de bens na recuperação de produto do crime
11. Rejeitado o reportante do bem
12. Acordo penal rejeitado
13. Inclui crime de abuso de autoridade para magistrados e membros do MP
14. Inclui punição a investigadores e juízes que violarem prerrogativa de advogados
ÉPOCA
Os cavaleiros da impunidade que articularam a anistia ao caixa dois
O vaivém de deputados e líderes partidários no gabinete do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM do Rio de Janeiro, ficou mais intenso perto das 22 horas da quarta-feira, dia 23. A noite avançava e os deputados não conseguiam chegar a um acordo sobre a emenda que deveria ser enxertada no pacote de medidas de combate à corrupção para perdoar as práticas de caixa dois cometidas por alguns políticos até agora. Não era uma mudança qualquer. Não se trata simplesmente de caixa dois. A intenção era produzir um anexo/emenda que abrisse uma brecha maior, capaz de anistiar não só o caixa dois, como também pagamentos de propina e outras modalidades de ilicitudes; de criar uma porta para um universo paralelo, um ponto de fuga para a dureza da lei imposta pela Operação Lava Jato.
Pressionados pela proximidade da delação da Odebrecht, praticamente todos os partidos, é óbvio, estão interessados em algum tipo de alívio. Alguns poucos parlamentares, entretanto, temiam expor suas figuras como pais dessa autoclemência sem pudores. A certa altura, dois deputados do PT saíram da sala de Maia, meio cabisbaixos, e se encostaram na parede de um dos corredores da Casa. “Apoiar essa anistia é uma morte política...”, desabafou um dos petistas. Tentando convencer o colega, o outro retrucou: “A morte política é o de menos, porque essa um dia passa”.
VEJA
Primeira onda de protestos da era Temer se espalha pelo país
A primeira onda de protestos pós-Dilma aconteceu neste domingo e já se espalha por diversas cidades brasileiras, como Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Campinas e São Paulo. Os manifestantes protestam contra a corrupção e apoiam a Lava Jato. Entre as pautas, também está o pedido de rejeição às mudanças no pacote anticorrupção, após o a Câmara dos Deputados votar na ‘calada da noite’ diversas modificações no projeto que desfiguraram o texto inicial.
Enquanto o Brasil ainda estava sob o choque do desastre aéreo envolvendo a delegação do time da Chapecoense, jornalistas e convidados, a Câmara aproveitou para votar, entre meia-noite e quatro horas da madrugada, diversas medidas – entre elas, o pacote anticorrupção.
Segundo os organizadores do movimento ‘Vem pra Rua’, um dos que encabeçaram os protestos pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, as manifestações acontecem em mais de 200 cidades brasileiras. Em São Paulo, os manifestantes se reúnem na Avenida Paulista e, no Rio de Janeiro, no Posto 5, na praia de Copacabana. Em Belo Horizonte, o ponto de encontro é a Praça da Liberdade que, segundo o ‘Vem pra Rua’, conta com cerca de 8.000 participantes neste momento. Em Brasília, os organizadores estimaram a presença de 15.000 participantes, enquanto a Polícia Militar informou que o número de manifestantes era de, aproximadamente, 5.000 pessoas. Em Recife, a organização do evento estimou 1.000 participantes.