Contador de 'causos' e pão-duro: as manias e rituais de Alckmin
Por Thaís Oyama
Geraldo Alckmin tem fama de sujeito afável e boa praça. O vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio tem sempre um "causo" na ponta da língua para contar, nunca recusa uma selfie e gosta de testar sua popularidade guiando o próprio carro e frequentando padarias — em Brasília, pode ser visto na Hiperpão, na Asa Sul, onde toma cafezinhos a R$ 3,50.
Outras características do vice, porém, são bem menos visíveis.
Para começar, Alckmin é reservado, reservadíssimo. Sua intimidade é uma fortaleza indevassável até para amigos próximos.
O advogado Orlando de Assis Baptista Neto, que já foi seu secretário e há décadas é seu conselheiro, durante 37 anos conversou com ele rigorosamente todos os dias. Pois Orladinho, como é conhecido, garante que nesse tempo uma coisa nunca mudou. "Ele nem sequer uma vez tratou comigo de um assunto pessoal. Só de gestão, política e temas de interesse público. O Geraldo é assim".
Geraldo Alckmin não é dado a expor suas intimidades e tampouco gosta de misturar as coisas.
Quando era governador, em 2011, o então recém-nomeado secretário do Planejamento, Emanuel Fernandes, quis saber de um assessor mais experiente do Palácio se "o Geraldo nunca saía para tomar uma cerveja" ou conversar sobre coisas triviais.
O assessor respondeu apenas que nunca tinha presenciado um episódio assim.
"Vou mudar isso", respondeu Fernandes. "Precisamos de mais proximidade entre nós nesse gabinete".
Fernandes, então, convidou Alckmin e os colegas secretários para irem à pizzaria Camelo, na avenida Juscelino Kubitscheck. Chegando lá, foi logo pedindo ao garçom: "Traz aí umas cervejas".
Alckmin, que não bebe, emendou: "E, pra mim, uma coquinha".
O refrigerante nem tinha chegado à mesa quando o governador virou-se para o secretário: "Emanuel, precisamos falar sobre o orçamento da Saúde, o Hospital das Clínicas está precisando demais de dinheiro."
E assim seguiu o resto da fracassada noitada imaginada pelo recém-chegado. "O Emanuel convidou o Geraldo para tomar cerveja e acabou despachando com o governador", comentou um dos secretários à época, para a gargalhada dos demais.
A morte do filho Thomaz e a facada em Bolsonaro
Alckmin acorda cedo e às cinco e meia da manhã já está telefonando para assessores.
Sistemático (tem anotado num caderno todas as anestesias que aplicou ao longo de sua carreira como médico e até hoje registra metodicamente as conversas que tem ao longo do dia em cadernos de espiral), montou para si uma agenda em três tempos.
De manhã, na vice-presidência, faz audiências políticas: recebe parlamentares, governadores, ministros. Se tem algum compromisso partidário, manda encaixá-lo no horário do almoço. À tarde, a agenda é setorial: o ministro Alckmin recebe representantes da indústria, do comércio e políticos ligados a eles.
Trabalha sábados, domingos e feriados e nada é capaz de interromper essa rotina.
Durante período fora da política, Geraldo Alckmin deu dicas de saúde no programa Todo Seu, de Ronnie Von, na Gazeta, em 2019 - Reprodução YouTube - Reprodução YouTube
Em 2015, então governador de São Paulo, Alckmin perdeu seu filho Thomaz, vítima, aos 31 anos, da queda do helicóptero que pilotava. Voltou a despachar no dia seguinte ao sepultamento, ainda que da ala residencial do Palácio.
A morte de Thomaz foi sua maior dor e também o maior desafio para a sua fé católica. Por algum tempo, atormentou o vice a ideia de que, em existindo o céu e o inferno, seu filho poderia estar em qualquer dos dois. Amigos o tranquilizaram dizendo, entre outras coisas, que Thomaz era jovem demais para ter muitos pecados. Por um ano, onde quer que estivesse, Alckmin parava o que estava fazendo para ir à missa no dia 2, data em que morreu seu filho.
O vice, dizem amigos, não se indispõe quando é contrariado, mas tem algumas certezas inabaláveis.
Uma delas: não fosse a facada desferida contra Jair Bolsonaro no dia 6 de setembro de 2018, ele teria disputado o segundo turno com o petista Fernando Haddad.
Depois da derrota daquele ano, repetia a quem encontrasse que, na semana que antecedeu o ataque a Bolsonaro, estava em seu melhor momento nas pesquisas e que, no dia do atentado, tinha chegado pela primeira vez à marca de dois dígitos, 11%, segundo uma pesquisa encomendada ao cientista político Antonio Lavareda.
O amigo Silvio Torres, ex-deputado federal e seu ex-secretário de Habitação, corrobora a tese: "O Geraldo estava crescendo, mas a visibilidade que Bolsonaro ganhou no atentado fez com que as atenções se desviassem do Geraldo porque as pessoas começaram a acreditar que era o Bolsonaro quem iria derrotar o PT. A partir daí, perdemos o controle".
Mesmo no círculo íntimo do hoje vice-presidente, porém, há quem considere a análise exagerada.
Com ou sem facada, não tínhamos como furar a onda Bolsonaro. Mas o Geraldo optou por processar a derrota dessa forma: não deu certo porque o acaso tirou ele da história"
Até hoje, ele repete: "Fizemos tudo certo, mas deu tudo errado".
Doutor Alckmin na TV e os anos de ostracismo
Na reta final daquela eleição, ninguém mais tinha qualquer esperança de virada, o desânimo era geral. Alckmin assistiu à apuração sozinho, recolhido em seu apartamento no Morumbi e tendo a mulher, Lu Alckmin, como única companhia.
A partir daí, foram quase três anos de ostracismo.
Alckmin saiu da eleição com humilhantes 4,8% dos votos e acusado de ter "enterrado" eleitoralmente o PSDB.
Estava também desempregado. Como a sua única fonte de renda, a aposentadoria de pouco mais que R$ 5 000 do INSS, não dava para pagar as contas da família, o ex-governador, em abril daquele ano, aceitou o convite para trabalhar como comentarista de saúde do programa de Ronnie Von na TV Gazeta —as "dicas do doutor Alckmin" incluíam métodos naturais para combater o estresse e noções de primeiros socorros para crianças.
Deu aulas em faculdades de medicina do interior, fez um curso de acupuntura no Hospital das Clínicas e atendeu a uns poucos convites para palestras — alguns deles discretamente providenciados por amigos preocupados com o aperto do seu orçamento.
Nas suas muitas horas vagas, recebia no escritório da filha, Sofia, no bairro do Itaim, os poucos políticos que o procuravam. Como, porém, a diferença entre os perfis dos seus visitantes e os de Sofia, blogueira e influenciadora de moda, começassem a causar alguns constrangimentos na sala de espera, Alckmin passou a "despachar" numa padaria vizinha ao seu apartamento no Morumbi, a Colmeia.
O hábito de frequentar padarias foi um dos muitos que ele herdou do pai. O médico veterinário Geraldo José Alckmin — franciscano da ordem terceira e adepto do voto de pobreza— criou sozinho os três filhos depois que a mulher, Miriam, morreu de uma doença pulmonar aos 46 anos de idade.
Alckmin, o caçula do casal, tinha nove anos quando perdeu a mãe. Desde então, apegou-se ao pai, seu ídolo confesso e declarada inspiração. Amigos do ex-governador sabem de cor trechos das cartas que o "doutor Geraldo" escreveu ao filho.
Mesmo não sendo franciscano como o pai — nem, como faz questão de esclarecer, seguidor da Opus Dei (esse era o caso do tio, o ex-ministro do STF José Geraldo Alckmin)—, Alckmin cultiva hábitos espartanos: por quatro mandatos, manteve em seu gabinete de governador em São Paulo uma caixa de engraxate que usava para lustrar os próprios sapatos; há cinco anos guia um HB20 mecânico; e há décadas possui os mesmos ternos, em alguns dos quais o ferro de passar roupa já deixou suas digitais. Quando vai ao seu sítio em Pindamonhangaba, que ele chama de Pinda, veste uma "calça rancheira", como ele diz, e, enxada na mão, sai a capinar o mato.
Nos anos de ostracismo, tempo livre era o que não lhe faltava.
Mesmo porque, até 2021, ninguém apostaria dez reais no futuro político de Geraldo Alckmin.
Sua sorte começou a mudar em maio daquele ano.
A isca de Chalita: 'Imagina o senhor vice de Lula'
Quando se iniciaram as movimentações eleitorais, o ex-governador decidiu que estava mais do que na hora de voltar à cena.
Por sugestão e cortesia de um amigo rico, encomendou uma pesquisa de opinião para saber a quantas andava o seu nome junto ao eleitorado paulista.
A pesquisa saiu em junho e trouxe para ele uma boa e uma má notícia.
A boa: Alckmin aparecia em primeiro lugar nas intenções de voto para governador.
A má: tudo indicava que esse resultado era fruto de mero "recall", a lembrança que eleitores guardam de nomes familiares e que os fazem citá-los em entrevistas.
Nas pesquisas qualitativas, os resultados eram bem diferentes. Os entrevistados diziam não sentir "necessidade" de ter Alckmin de volta ao governo, não conseguiam se lembrar das suas realizações e indicavam preferir alguém "de fora" da política para o comando do estado (Tarcísio de Freitas, o governador eleito em 2022 pelo Republicanos, ainda estava na lanterninha naquela época). Diante disso, Alckmin foi fortemente aconselhado a desistir de se candidatar a governador e tentar uma composição em seu partido que lhe permitisse concorrer ao Senado.
Detestou o conselho.
Mas sabia que, se insistisse em se candidatar pela quinta vez ao governo de São Paulo, esbarraria no então ocupante do cargo, João Doria, transformado em desafeto depois que, em 2016, tendo sido eleito prefeito com a ajuda de Alckmin, passou a articular a sua própria candidatura à presidência da República, rivalizando com o ex-padrinho.
Doria já tinha escolhido o sucessor de sua preferência, e ele não era Alckmin, mas Rodrigo Garcia, importado do DEM. Na época detentor de grande influência no diretório paulista, Doria se apresentava como representante do "novo PSDB". Desnecessário dizer quem ele considerava ser o "velho PSDB".
Alckmin não estava apenas isolado no próprio partido: sentia-se empurrado para fora dele.
Foi nesse estado de espírito, e no banco de uma padaria, que ele ouviu a ideia pela primeira vez.
O ex-deputado Gabriel Chalita, seu ex-secretário e amigo, havia acabado de voltar de Paris e comentou que os franceses estavam "horrorizados" com o governo Bolsonaro. Alckmin respondeu temer pelo pior: "Se ele ganhar, fará dois nomes no Supremo", e emendou: "Só Lula pode derrotar Bolsonaro". Chalita jogou a isca: "Imagina o senhor de vice do Lula".
Alckmin mordiscou o lábio, seu tique em momentos de nervosismo, e cortou o assunto.
O café na padaria para o qual Chalita convidou Alckmin no dia 14 de julho de 2021 era a primeira etapa de um plano que começara a ser traçado dias antes por ele e pelo ex-prefeito de São Paulo e hoje ministro Fernando Haddad (PT).
No mês anterior, Chalita havia recebido um telefonema da advogada Luciana Temer, sua amiga e filha do ex-presidente Michel Temer. A advogada contou-lhe que havia almoçado com o marqueteiro Felipe Soutello, responsável por diversas campanhas tucanas, e tinha ouvido dele uma ideia muito interessante.
Você pode achar que é uma loucura, Chalita, mas o Felipe acredita que, se o Lula chamar o Geraldo para ser vice dele, os dois formam uma chapa que pode resolver o Brasil"
Chalita impressionou-se e telefonou para Haddad que, mesmo descrente da proposta, prometeu levá-la a Lula.
O ex-prefeito dirigiu-se ao petista cheio de dedos: "Presidente, vou lhe apresentar uma ideia que pode parecer estranha, mas peço que o senhor me deixe argumentar até o fim". Haddad não precisou ir até o fim.
"Pode trabalhar nisso", interrompeu-o Lula, assim que entendeu do que se tratava.
No círculo íntimo de Alckmin, quase todos foram contra a ideia. "Você ficou louco?", perguntou o ex-deputado federal e ex-presidente do PSDB Pedro Tobias ao amigo de longa data. Tobias conta que o projeto parecia tão descabido naquele momento que alguns próximos chegaram a cogitar se tratar de um plano do PT para tirar Alckmin do páreo e favorecer a candidatura de Haddad ao governo de São Paulo.
Apenas Orlandinho e Lu Alckmin se entusiasmaram desde o começo com a improvável aliança entre o quase ex-tucano (ele deixou o PSDB em dezembro de 2021 e se filiou ao PSB em março do ano seguinte) e o rival de seu partido em seis eleições presidenciais, incluindo a de 2006, em que Alckmin e Lula tiveram um confronto direto.
O vice leal
Vice e presidente diferem em muita coisa.
Colaboradores do ex-governador dizem que, ao contrário de Lula, Alckmin tende a "olhar para a árvore e não para a floresta". Segundo esses colaboradores, o vice costuma focar no específico, no detalhe. Essa característica, aliada ao que seria um excessivo amor pelos números, resultaria, entre outras coisas, em discursos enfadonhos e num cruel método de interrogatório com que costuma testar seus assessores.
Alckmin, de acordo com um ex-colaborador de governo, é capaz de, numa reunião com técnicos de saúde, por exemplo, perguntar algo tão específico como "quantas doses de vacina contra a poliomielite foram aplicadas no estado entre os meses de janeiro e abril" ou "quantas crianças negras abaixo de cinco anos receberam o imunizante" —para, então, diante do embaraço de seus interlocutores, afirmar: "Vocês não sabem de nada, vou ligar para um amigo médico de Pinda que sabe".
Além do conhecimento de assessores, o hoje vice-presidente gosta de colocar à prova também a sua popularidade —e tem os próprios métodos para isso.
Durante a campanha eleitoral, por exemplo, antes de desembarcar em uma cidade com Lula, determinava a um ajudante, o tenente Lamoso, que tomasse cinco táxis para lugares aleatórios. A missão do militar era puxar conversa com os motoristas durante as corridas para assim "aferir" a receptividade da chapa Lula-Alckmin na região. O vice considera seu método infalível.
Alckmin tem horror a desperdícios e, desde que se mudou para o Palácio do Jaburu, mandou reduzir as contas de água e luz, além de cortar o serviço de mordomo, as despesas com vinhos e os gastos em empórios — a ordem agora é comprar só em supermercados.
O vice também reduziu o número de assessores no ministério e dispensou a ajudança de ordens a que tem direito —eram quatro militares ao todo: um oficial de cada arma, mais um auxiliar.
No almoço da frente parlamentar do empreendedorismo a que compareceu no último dia 7 numa casa do Lago Sul, em Brasília, Alckmin foi acompanhado apenas de dois assessores.
Convidado de honra, encontrou quarenta parlamentares esperando por ele na mesa — outros sessenta deputados e senadores não couberam nela e tiveram de ser acomodados em mesas menores espalhadas na varanda e no salão. Entre goles de água e refrigerante e garfadas no filé de pescada amarela com molho bisque, os presentes disputavam a atenção do vice e ministro.
De um deputado de Pernambuco, Alckmin ouviu o pedido para "convencer o Lula" da importância de manter a autonomia do Banco Central, hoje presidido por Roberto Campos Neto, que o presidente da República atacou seguidamente nas últimas semanas.
Alckmin foi Alckmin na resposta: disse que não se tratava de uma "briga" entre duas pessoas, que Lula e Campos sempre se respeitaram e que "a democracia pressupõe discussão".
O vice, diz um de seus amigos, qualquer que seja a bola dividida que venha a ter com Lula, optará sempre pela contemporização, nunca pelo confronto público.
Com comportamentos assim, diz um ex-colaborador, acaba dando um duplo lustro à própria imagem: encarna a "voz da moderação" e faz um contraponto fleumático a um Lula frequentemente agudo.
"Lealdade, lealdade, lealdade". Essas serão as três palavras que pautarão a atuação de Alckmin como o número 2 de Lula, garante Orlandinho, o amigo mais próximo. Aferrado a elas, o vice nem sequer aceitou se sentar na cadeira do chefe durante a sua interinidade, em janeiro, quando o presidente viajou para a Argentina. Preferiu despachar em uma saleta de trabalho ao lado do gabinete presidencial.
Geraldo Alckmin nunca força a porta.
Mas, como mostrou a história, às vezes nem é preciso: o destino bate nela.