''Governo sem base sólida não dura'', diz Collor em entrevista ao Correio

Posted On Segunda, 04 Novembro 2019 05:54
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''Governo sem base sólida não dura'', diz Collor em entrevista ao Correio (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

30 anos depois de ser eleito para a presidência, o atual senador Fernando Collor, 70 anos, faz balanço sobre o cenário político brasileiro

"É um governo que se nega a entender os partidos políticos como os canais institucionalmente válidos para a interlocução entre os interesses da população e não usa a capacidade do Executivo para atendê-las", diz

Por Denise Rothenburg - Bernardo Bittar - Augusto Fernandes - Ana Dubeux

 

No próximo 15 de Novembro, completam-se 30 anos da primeira eleição direta pós-ditadura de 1964. O país afundado numa crise econômica, o presidente José Sarney desgastado. Depois de uma longa campanha, com 22 candidatos, e no mano-mano com Lula, Fernando Collor de Mello torna-se o mais jovem brasileiro a tomar assento no terceiro andar do Planalto. “É claro que, quando me elegi, eu disse: 'Bom, sou um um super-homem ( …) Essa questão da eleição em que se ganha com uma disputa muito acirrada, e essa coisa toda, faz do vitorioso a primeira sensação de que: ‘não, eu posso tudo. Agora, eu sou o maioral e, agora, todos os outros têm que se submeter à minha vontade, ao meu desejo’. Isso é um erro, e está acontecendo agora”, avalia o senador Fernando Collor, 70 anos, nesta entrevista exclusiva ao Correio, 30 anos depois.

 

Em quase duas horas de conversa, na última quinta-feira, o ex-presidente repete inúmeras vezes a expressão “já vi esse filme”. “Parece que está passando novamente na minha frente. Certos episódios e eventos me deixam muito preocupado, talvez não cheguemos a um bom termo sobre o mandato mal exercido pelo presidente da República — a começar por essa falta de interesse em construir uma base sólida de sustentação no Parlamento”, diz, ao avaliar que errou ao não colocar essa construção como prioridade desde o primeiro dia de seu governo. O desfecho foi o afastamento, em 29 de setembro de 1992, quando a Câmara aprovou a abertura do processo de impeachment. Torce agora para que o mesmo não aconteça com o atual ocupante do Planalto e alerta inclusive para o uso das redes sociais, algo que não havia na sua época: “Isso é um perigo. O presidente incorre num erro grande, na minha avaliação, quando ele delimita a sua interlocução a um nicho de 15%, 20% da população, que são aqueles considerados bolsonaristas puros de origem. Eles não representam a nação brasileira”, afirma.Continua depois da publicidade

 

Collor menciona, ainda, que não guarda mágoas, porém, não esquece. Quanto a Lula, ele considera que está preso “imerecidamente” e diz que se arrepende de ter levado Mirian, a mãe de Lurian, filha mais velha do petista, ao horário eleitoral gratuito de 1989, acusando o candidato do PT de lhe propor um aborto. “Me arrependo. Se tivesse visto a gravação, não teria autorizado que aquilo fosse ao ar. Foi de muito mau gosto”, afirma.

Sua expectativa é que a história lhe julgue como um “homem à frente do seu tempo”, referindo-se à abertura da economia e de mentalidade naquele início dos anos 1990, quando ele chamava os carros brasileiros de “carroça”. “Agora, esse termo serve para qualificar o presidencialismo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

 

O senhor foi eleito para a Presidência da República em um período de muita polarização, como vê o cenário atual?

É um filme que eu já vi, embora haja diferenças entre o início do governo (do presidente Jair) Bolsonaro e o início do meu governo, parece que está passando novamente na minha frente. Certos episódios e eventos me deixam muito preocupado, talvez não cheguemos a um bom termo sobre o mandato mal exercido pelo presidente da República — a começar por essa falta de interesse em construir uma base sólida de sustentação no Parlamento. Partindo-se do princípio de que, sem maioria no Congresso, não se governa — isso é uma condição sine qua non em um regime presidencialista, mas também no parlamentarista. O desinteresse em construir essa maioria nos leva a temer um desenlace diferente do que gostaríamos. E, num clima de ingovernabilidade, tudo pode acontecer. Foi um descuido de minha parte (referindo-se ao próprio mandato, entre 1990 e 1992), nesse ponto, eu vejo a semelhança de não ter me preocupado, não ter dedicado a atenção devida desde o início do meu governo a um melhor relacionamento com a classe política. O presidente da República precisa entender que ele é o líder político da nação. Como líder político da nação, ele tem por dever fazer política, e fazer política pelos caminhos institucionais, com os partidos políticos e com os políticos. Querer quebrar uma regra de ouro de um processo democrático, é um nonsense.

O senhor considera que o presidente não tem um interesse nessa aproximação com o Congresso? Ele não entende essa necessidade?

Não vejo por parte do presidente interesse em uma maior aproximação com o Congresso Nacional, apesar de ele ter no seu currículo 28 anos de experiência na Câmara dos Deputados — e isso nos remete a 1990, a primeira eleição dele, que coincide com o meu primeiro ano de governo. Portanto, ele teve, no decorrer do seu mandato, condições de vivenciar e de obter a experiência do que significa um relacionamento não fluido entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Mas me parece que ele não tirou nenhuma lição até agora, iludido, que se encontra num momento em que reformas patrocinadas pelo Executivo tiveram apoio na Câmara e, depois, no Senado Federal. É uma falsa dedução de que esse apoio dos deputados e dos senadores, especificamente falando da reforma da Previdência, representa o apoio que ele detém no Congresso Nacional. Isso não é verdadeiro, porque nós sabemos que as reformas caminharam até agora graças ao esforço inaudito do presidente (da Câmara dos Deputados) Rodrigo Maia (DEM-RJ) e também do Davi Alcolumbre (DEM-AP) — presidente do Senado. Ou seja, são propostas de reforma que o Congresso Nacional chamou para si e tocou como suas.

Isso está separado? Uma coisa são as reformas econômicas de que o país precisa, outra, é o apoio ao governo. São estações estanques?

É completamente diferente. O apoio do Congresso ao governo não se mede por um evento como esse, da aprovação das reformas e do número elevado de participantes pró-reformas. O apoio ao governo, nós verificamos pela solidariedade dos parlamentares ao presidente da República, e não me parece que exista essa solidariedade ao presidente da República. No momento em que ele precisar dessa solidariedade do Congresso, ela vai lhe faltar, e isso cria um certo problema institucional para o país.

O senhor é senador desde 2007. Viu os ex-presidentes Lula, Dilma, Temer e, agora, Bolsonaro ocuparem a presidência. Como avalia cada um deles? Como Bolsonaro está se portando em comparação aos que já passaram?

É um governo completamente diferente dos outros. Primordialmente, é um governo que se nega a entender os partidos políticos como os canais institucionalmente válidos para a interlocução entre os interesses da população e não usa a capacidade do Executivo para atendê-las. Faltando essa compreensão, falta um instrumento essencial para o exercício da democracia. Estamos vivendo um jogo democrático, em que, como disse, sendo líder político da nação, cabe ao presidente fazer política. Exercitar-se politicamente nas conversas, nas articulações, nos entendimentos via partidos políticos e lideranças partidárias para fazer avançar as reformas e tentar fazer com que elas sejam entendidas pela população. Os outros governos, tirando o governo da ex-presidente Dilma (Rousseff), que também incorreu nesse mesmo equívoco — de não dar a atenção devida ao Congresso Nacional —, os outros todos se deram por satisfeitos com a interlocução que receberam.

Isso inclui também o governo de Fernando Henrique Cardoso?

Sim, sem dúvidas. O Fernando Henrique Cardoso teve uma relação com o Congresso muito boa. É tanto, que teve a aprovação da reeleição. O presidente Lula, do mesmo jeito. Teve uma interlocução muito boa com o Congresso, solidariedade com o Congresso. O presidente Temer, do mesmo modo. Ele passou por duas provas fortíssimas, dificílimas durante o mandato e conseguiu superar, graças ao apoio que havia alcançado no Congresso. Tiro a Dilma da análise, porque ela estava incorrendo no mesmo equívoco.

O desfecho (de Bolsonaro) poderá ser o mesmo? A caminhar neste ritmo, o fim do filme pode ser o mesmo do seu governo e da presidente Dilma (o impeachment)?

Olhe, continuando assim, eu não vejo a menor possibilidade de este governo dar certo. O que acontecerá, eu não saberia dizer. Mas, se continuar do jeito que está, o governo não tem como levar adiante o período governamental.

Mesmo com a economia entrando nos eixos? Porque a gente percebe sinais de recuperação econômica. O dólar está caindo, a Bolsa (de Valores), subindo, já houve uma pequena recuperação na questão do emprego, muito pequena ainda, mas os analistas econômicos apontam para uma melhora na economia. Isso pode ajudar o presidente?

A dificuldade é coordenar esse discurso otimista. É muito difícil que a população, que hoje está desempregada, passando fome, alijada de qualquer possibilidade de melhoria da sua qualidade de vida, vivenciando problemas na segurança pública, na educação, na saúde, no emprego, na sua renda; é muito difícil que nós, com esse discurso, convençamos a população de que as coisas estão melhorando. Falar para a população: “Olha, pessoal, tenham calma. Vocês estão vendo a Bolsa de Valores batendo recorde de pontos, o dólar baixando, temos 12,5 milhões de desempregados, mas temos 140 mil trabalhadores com carteira assinada, os juros atingiram o percentual mais baixo da história”; e a classe média, que tem o seu cartão de crédito e o seu cheque especial, não vê isso refletido no dia a dia. Quando parcela a conta do cartão, vê que os juros batem 300%. No cheque especial, são 280%. Aí, a resposta é: “Bom, mas como é que nós temos hoje os juros ditos aí, que são os mais baixos da história do país, se eu estou pagando 300% ao ano no parcelamento do meu cartão de crédito ou no meu limite de cheque especial?”. Então, é necessário que haja concordância, melhoria real das condições econômicas do país com aquilo que a população realmente sente. O último exemplo disso foi o que aconteceu no Chile, que, ao longo dos últimos anos, era tido como o país de maior equilíbrio e maior estabilidade econômica na América Latina, onde as reformas foram feitas, segundo propagado, com muito sucesso e muito êxito. Parecia um paraíso aqui no nosso continente. E, de repente, essa ebulição.

 

O presidente tem uma base muito forte na internet, nas redes sociais. Ele está correto em firmar o governo para falar nessa bolha, que são os eleitores que permaneceram? Não falta um pouco de diálogo, também, com a sociedade como um todo?

Isso é um perigo. O presidente incorre num erro grande, na minha avaliação, quando ele delimita a sua interlocução a um nicho de 15%, 20% da população, que são aqueles considerados bolsonaristas puros de origem. Eles não representam a nação brasileira. O que representa a nação brasileira é o conjunto da sociedade na sua diversidade. O presidente precisa entender que os votos que ele obteve na eleição não representam o apoio a ele enquanto candidato. Uma grande parcela foi dada a ele em função daqueles que não queriam a volta do PT ao governo — o chamado antipetismo.

Bolsonaro não entendeu isso ainda?

Não, não entendeu. E também não entendeu uma coisa ainda mais importante, que é a questão da construção de uma unidade nacional em torno de um projeto de país. O país saiu muito dividido dessa eleição. As divisões foram aprofundadas e, naturalmente, quando o presidente é eleito, elas seguem existindo. É necessário ter um projeto que aglutine a população, que una o país. E esse projeto não existe. Isso começou sendo levado como a reforma da Previdência, que tinha a missão de resolver tudo. Nós sabemos que não vai resolver. Depois, falam da reforma tributária. A reforma tributária sequer está naqueles cinco pontos abordados pelo ministro da Economia (Paulo Guedes) como pontos que estariam sendo levados ao Congresso, pelos presidentes das duas Casas, como prioritários para a continuação das reformas. Vem, agora, uma reforma administrativa. Depois, uma reforma de mudanças nas chamadas regras de ouro e, por fim, na questão dos gastos obrigatórios. Falta ao governo a consciência de que cabe ao presidente da República diminuir essa enorme distância que divide o país.Continua depois da publicidade

A reforma pode ser considerada uma vitória, então? Porque o que se prometeu, inclusive para o servidor público e até para pessoas que têm um mandato eletivo, é que teria alguns cortes, algumas mudanças. A reforma foi feita a contento?

Não. Não acho que a reforma tenha sido feita a contento. Sobretudo nesse assunto (os servidores públicos), porque a questão dos privilégios não foi mexida como a dos mais necessitados, as camadas mais vulneráveis da população. Eles estão pagando a conta da Previdência, não tenho a menor dúvida. Agora, com essa reforma administrativa, se pretende trazer, dar alguma resposta em relação aos privilégios que existem no serviço público federal — onde realmente está uma questão que deve ser analisada e enfrentada. Mas isso será uma demonstração do interesse também do governo, no sentido de dizer: “Olha, nós penalizamos muito a classe trabalhadora com a reforma da Previdência, e, agora, estamos demonstrando que vamos à caça desses marajás do serviço público federal”. Isso, de alguma maneira, poderá servir. Mas o que falta é um projeto que inclua a população.

O senhor citou agora a expressão caçador de marajás. À época, sustentava esta bandeira de hoje, de enxugamento, que não deu certo. Foi outro erro?

Nós conseguimos, sim. A prova está aí na Constituição. Porque houve uma coincidência no momento em que eu fui eleito governador de Alagoas, e tomei posse em 1987. Em 1988, tivemos a promulgação da Constituição e a Constituinte estava funcionando. Então, o relator da Constituição, (o deputado federal) Bernardo Cabral (MDB-AM), e eu, enquanto governador, detectando que estava na Constituição a origem da criação do chamado marajaísmo — acúmulos de vantagens de anuênio, biênio, quinquênio, decênio, isso tudo cumulativamente e mais alguns outros pontos —, estive com o relator conversando para que esses artigos fossem retirados do projeto. E, isso, nós conseguimos. Graças ao apoio do então deputado e relator da Constituição. Foi um grande avanço. Mas, de lá para cá, novos privilégios e novas formas de aumentar os ganhos ao final do mês foram engendrados.

Quando o senhor estava na Comissão de Infraestrutura, tentou fazer a meritocracia dos cargos nas agências reguladoras. Isso está valendo? Como está hoje?

Está valendo e melhorou bastante. Inclusive, essas medidas passaram a ser regra geral em todas as comissões. Estabelecemos, por exemplo, para as agências reguladoras, uma série de exigências, demonstrando, com diplomas e registros, a questão dos títulos, a capacidade realmente funcional daquele indicado para exercer o mandato para o qual estava sendo cogitado. Melhorou muito, porque isso foi uma peneira. Não era qualquer nome que podia chegar lá. Mas é preciso um pouco mais. Me preocupa essa questão da indicação porque está muito politizada. Apesar de todos esses requisitos que estabelecemos, ainda existe briga interna dentro do Congresso para saber quem vai indicar quem para determinada agência. Precisa ser corrigido. A indicação pode ser, sim, política. Mas é preciso estabelecer critérios. O “toma lá dá cá” é nefasto quando é feito a qualquer preço, a qualquer custo. Isso, não pode. No regime parlamentarista, como é constituída a maioria? É um “toma lá-dá-cá”? Sim, mas dentro dos critérios. E assim é que se constrói a maioria.

Mas a população gostou quando o presidente escolheu o governo e os ministros sem ouvir os partidos...

É, porque o que foi vendido foi o seguinte: não vamos ter “toma lá dá cá”. Então, vou escolher os que achar conveniente. Isso, a população gosta, acredita e diz: “Poxa vida, esse camarada é um super-homem. Vai conseguir governar sem ouvir partido político, sem oferecer nada para que eles possam se sentir representados no governo”. Ele deixa de ser um super-homem quando chega ao final e a população verifica que tudo aquilo que foi dito era uma antessala para realizar uma grande administração que não deu em nada. O que a população deseja é ver um governo que funcione e dê respostas positivas às expectativas. É fácil de dizer que não quer conversa com classe política, mas não dá resultado nenhum. Então, é uma questão absolutamente clara, nítida, cristalina: governo que não compõe, que não constrói a sua maioria, não governa, não dura.

Existe semelhança entre o PSL e o PRN (partido de Collor enquanto presidente)?

Sim. O eleitorado deu ao presidente, além da sua eleição, um grupo de 53 deputados para, a partir desse núcleo, ele construir uma maioria. Mas ele cria essa confusão enorme, agora entrando na Procuradoria-Geral da República, pedindo para levantar as contas do partido, colocando uma série de suspeições em relação ao presidente do partido (o deputado Luciano Bivar, PSL-PE). Esse filme, repito, eu já vi.

 

O presidente, nos momentos mais críticos, coloca em xeque a questão da democracia, de valores constitucionais importantes. Acha que a democracia do Brasil corre risco?

Eu vejo com uma apreensão certas manifestações que são claramente dadas pelos filhos. Eventualmente, pelo próprio presidente da República, em menor intensidade, sobre esse questionamento do regime democrático, de que não funciona se nao for uma ditadura, se não for um regime forte.

Fala-se até no AI-5 (um dos piores períodos da ditadura militar) com uma tranquilidade enorme…

Falado dessa forma, isso nos coloca com uma pulga atrás da orelha. Porque não é qualquer pessoa que está falando. É alguém como um de seus filhos.Um deles tem a senha do seu Twitter, portanto, uma pessoa da mais estrita confiança, que, além dos laços familiares, compartilha a mais absoluta confiança sobre o pensamento político dele. Então, num momento assim, vale dizer, que é o próprio presidente da República tuitando. Esse tipo de ameaça, afirmação ou divagação tem que acabar de uma vez por todas. Estamos vivendo num regime democrático, uma democracia com sobressaltos, mas uma democracia moderna. Declarações desse tipo, ameaças desse tipo, elucubrações desse tipo, não cabem realmente no momento atual em que vivemos, nem em momento nenhum.

O senhor acha que o país está preparado para o parlamentarismo? É uma saída?

O presidencialismo é a carroça do sistema político brasileiro. O regime parlamentarista, contrariamente ao presidencialista — que traz no seu bojo o vírus da ingovernabilidade, porque de seis em seis meses temos uma crise —, traz no seu bojo o germe da governabilidade, da convivência política, não interferindo na administração do país. A questão da governabilidade fica muito explícita quando há uma mudança de governo dentro do sistema parlamentarista. Se um primeiro-ministro perde a maioria, cai o gabinete. Se cai o gabinete, o país continua funcionando. Demora-se aí... Veja Israel, tem quase dois meses que estão trabalhando nessa questão, e o país continua funcionando normalmente. Eu sou parlamentarista porque entendo que esse sistema evita crises de governabilidade.

Por que defende a Lei de Abuso de Autoridade?

Porque eu sou vítima do abuso de autoridade. Quem é vítima de abuso de autoridade, naturalmente, está vacinado contra isso. É preciso colocar freios nessa corrida alucinada onde certas instituições estão se arvorando em direitos que a Constituição não confere, mas que, por um acordo tácito, as outras instituições ficam aceitando. Então, é necessário dar-se, sim, um freio ao abuso que certas autoridades cometem no exercício das suas funções.

Refere-se ao Ministério Público e à PF?

O Ministério Público, a Polícia Federal... Sobretudo o Ministério Público. Nós ficamos aí, durante quatro anos, à mercê de decisões tomadas por um procurador da República que se demonstrou um sociopata, uma pessoa completamente fora dos mínimos requisitos necessários para o exercício de uma função tão elevada quanto a de procurador-geral da República. As decisões que ele tomou, o (Rodrigo) Janot, naturalmente têm que ser decisões levadas em conta tomando-se por princípio aquilo que ele fala. Inclusive dizendo que ele tinha uma farmácia que era uma geladeira, com todos os tipos de bebida, e que, no fim da tarde, as pessoas iam se servir para esfriar a cabeça. Nessas tertúlias vespertinas, com esses eflúvios do álcool, quantas decisões equivocadas não foram tomadas? É preciso, sim, que se dê um certo freio aos abusos que certas autoridades vêm tomando.

Isso aconteceu agora, mais recentemente, quando houve um pedido de busca e apreensão, no seu escritório?

Sem dúvida. Foi um absurdo. Inclusive, desafiei, num discurso aqui no Senado, que apresentassem (...) nem prova, não quero nem que apresentem prova, mas que apresentem um liame, um leve indício de que alguma das coisas ali colocadas seja verdadeira. Espero que cumpram os desafios, que aceitem o desafio.

Lá atrás, quando o PRN começou a fazer água, o senhor recorreu ao PFL. Agora, no caso do presidente, se ele recorrer ao DEM, vai resolver?

Não adianta. Digo por experiência própria. Repito, já vi esse filme. Na questão do meu partido, que, na eleição de 1990, elegeu 20 e tantos deputados, me foi pedida uma reunião com os deputados do PRN, e eu reagi muito. Mas um parlamentar nos reuniu na casa dele, num almoço, e vieram dizer que precisavam de espaço, de alguém do PRN, o partido do presidente, em um ministério. Saí com esta frase infeliz: “mas vocês não podem reclamar porque vocês têm o presidente da República”. Uma frase extremamente infeliz e indelicada. No momento em que precisei da solidariedade do PRN, ela não veio. E, nos outros partidos, no momento em que vai se socorrer a eles, dizem: “nem o partido dele, ele conseguiu, agora ele quer conseguir o nosso? Não”.

O senhor guarda mágoa? Esquece fácil?

Não. A gente não pode esquecer, porque faz parte da história de vida. A gente não esquece. Mas mágoa e ressentimento, nenhum. Isso menos em homenagem aos meus adversários de então, e, mais, pensando na minha própria saúde. Quando a gente guarda mágoa e ressentimento, se torna alguém muito desinteressante para o convívio com outros; pessoas muito amargas. E, isso, eu não pretendo fazer.

O senhor mudou o temperamento?
Está mais humilde?

Sim, o tempo vai nos amadurecendo. Fiquei mais compreensivo, mais humilde, tranquilo. Coisa que, no início, não existia no meu caso. O meu governo começou com o fim da ditadura. O governo do (José) Sarney foi o da transição democrática. O primeiro governo com voto foi o meu. E, nesse primeiro governo da redemocratização, eu, com 40 anos de idade, saindo de um estado pequeno (Alagoas), com pouca projeção eleitoral (...) Então, vem uma candidatura como a minha e sai vitoriosa. Claro que, quando me elegi, pensei que era o super-homem. Coloquei na cabeça que precisava mudar o Brasil do dia para a noite. “Vou fazer, vou acontecer”. Então, foi um erro. Um erro que está acontecendo agora.

Em relação a essa época, o confisco da poupança também foi um erro?

Houve o bloqueio dos ativos, e não só da poupança. Mas esse dinheiro foi devolvido em 18 parcelas. A última, paga em agosto de 1992, um mês antes do meu afastamento — até o último centavo com juros acima dos juros que remuneravam a caderneta de poupança à época. Naquela ocasião, a inflação era de 90% ao mês, e era impossível implementarmos qualquer programa econômico. Tínhamos que esfriar a economia, reduzir o volume de recursos em circulação. Havia um volume enorme de recursos, que, em função da inflação, estavam sendo direcionados para o overnight, aplicações de curtíssimo prazo que rendiam fortunas de um dia para o outro. Para implementar o nosso plano econômico, tínhamos que ter um espaço. Assim, primeiramente, era necessário congelar os preços. Tínhamos que dar uma segurada na liquidez, aí procuramos ver o perfil do poupador em caderneta de poupança, e veio estudo do Banco Central demonstrando que 70% dos poupadores tinham de 50 mil cruzados para menos. Daí nasceu a questão dos 50 mil cruzados. Sem o programa, não teria havido a abertura comercial, não teria havido a quebra das reservas de mercado, não teria havido a introdução da telefonia celular, os novos computadores, mais avançados, de acordo com os últimos lançamentos do mundo. Enfim, não teríamos tido oportunidade de fazer nada, porque estaríamos em uma espiral inflacionária enlouquecedora e que levaria o país ao debaque.

E a relação Brasil-Argentina, como fica depois dos últimos episódios?

Muitas declarações foram dadas no calor de uma campanha eleitoral, das paixões desencadeadas e das bravatas próprias do período. Aqui, a primeira bravata que eu ouvi, logo no início do governo, foi dada pelo ministro da Economia, que, quando perguntado sobre Argentina, disse: “que Argentina? Argentina não tem a menor importância”. E a questão do Mercosul? “Não, a questão do Mercosul, a gente tem que deixar pra lá”. Quer dizer, é uma coisa absolutamente incompreensível para alguém medianamente inteligente, e ele tem uma inteligência superior. Brasil e Argentina têm interesses indissociáveis. A Argentina é o principal parceiro comercial do Brasil na importação de produtos manufaturados. Temos a China, União Europeia, Estados Unidos, e, para nenhum deles, nós exportamos tantos produtos industrializados e manufaturados. Se a Argentina vai bem, se está em situação boa economicamente — que não é o caso no momento — isso tem um impacto no nosso PIB muito forte. Esperamos que, também superadas essas diatribes entre o presidente brasileiro e o francês (Emmanuel Macron), o acordo Mercosul-União Europeia possa prosseguir. Espero que, de forma civilizada, possamos ter um reencontro entre o presidente eleito Fernández e o presidente Bolsonaro. É do interesse dos dois países.

O Fernández chegou a fazer o “L” de Lula livre. Como o senhor vê a questão do Lula?

Eu acho que o Lula sofreu uma injustiça. Sou suspeito para falar, mas acho que foi uma injustiça e essa condenação dele merece ser reconsiderada. Acho que ele está preso imerecidamente.

Lá atrás, na campanha, o senhor também usou aquela questão do caso Lurian (filha do ex-presidente Lula). Se arrepende?

Me arrependo. A responsabilidade cabia ao candidato, que era eu. A gente não toma conhecimento das coisas que saem no fragor de uma disputa eleitoral, nós não temos como saber o que vai num programa gratuito. Chegou, numa manhã, a indicação do que a pessoa queria falar e fizeram a gravação. Me alertaram que haveria essa gravação, que era algo forte, e eu disse: “muito bem, toca”. Se tivesse visto a gravação, não teria autorizado. Foi de muito mal gosto, para dizer o mínimo, e sim, me arrependo, não teria feito nos dias de hoje.

Recentemente, o senhor esteve com o Sarney. Pensa em reunir os ex-presidentes?

Ex-presidentes se reunindo sem uma prévia conversa com o atual presidente parece até uma conspiração. Ex-presidente precisa ter um comportamento o mais discreto possível. Quando puder falar do governo, que fale no sentido de colaborar, de ajudar. A gente não transfere experiência, mas conta sobre a nossa experiência. O presidente da República não fez nenhum gesto no sentido de querer se aconselhar ou ouvir ex-presidentes. De minha parte, desejo o sucesso do governo.

Como vê a falta de atenção do governo com o petróleo no Nordeste?

O governo não foi bem. Agiu de forma improvisada, lenta. De maneira a não atender aquilo que se esperava de uma ação governamental no enfrentamento de um desastre ambiental como esse. Temos a questão dos nossos mangues, os arrecifes de corais (...) Esses arrecifes, sobretudo, serviram como uma muralha para evitar a passagem de mais óleo. E esses arrecifes de corais são fundamentais para a flora.

Como imagina que vai ser julgado pela história? Como deseja ser julgado?

Acho que serei julgado como um homem que se antecipou ao tempo. Cheguei antes do tempo. Acho que as circunstâncias não estavam preparadas ainda para uma Presidência nos moldes daquela que exerci, com as ideias que trouxe, as iniciativas que eu tomei.

Refere-se especialmente ao mundo globalizado?

Sim, a um Brasil, um país fechado, um país que não tinha vinculação com o restante do mundo. Um país acanhado, com complexo de colônia. Essa abertura não foi somente comercial, mas de mentalidade, da cabeça das pessoas. Essa abertura da cabeça, do espírito e da alma do brasileiro teve o seu ápice com os caras pintadas. A população estava necessitando gritar, deblaterar, poder xingar, poder protestar, manifestar a sua insatisfação. Isso é uma coisa que eles não conheciam ainda. Mas um animus do meu governo.