Com Estadão Conteúdo
Com os votos dos ministros Kassio Nunes Marques e Edson Fachin, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou nesta quinta-feira, 17, maioria para validar em todo o País o modelo do juiz de garantias, em que um magistrado fica responsável somente pela condução de inquéritos, enquanto outro deve julgar o mérito do caso. A mudança no ordenamento do sistema de Justiça penal foi aprovada pelo Congresso em 2019 e, na prática, estabelece uma clara separação entre a fase processual e a de investigação. Restam votar os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia.
A instituição do juizado de garantias é uma consequência da Operação Lava Jato e seus desdobramentos. A atuação do ex-juiz Sérgio Moro, então titular da 13.ª Vara Federal de Curitiba, desagradou a muitos no mundo jurídico, principalmente depois que a divulgação de mensagens trocadas com os procuradores da força-tarefa da Lava Jato mostrou indícios de que o juiz e membros do Ministério Público combinavam movimentos nos processos.
Em 2019, Moro, já ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, enviou ao Congresso Nacional uma série de medidas que ficaram conhecidas como "pacote anticrime". A figura do juiz de garantias entrou nele por uma emenda, sugerida por um grupo de deputados que incluía Paulo Teixeira (atual ministro do Desenvolvimento Agrário), Margarete Coelho (então deputada federal pelo PP-PI), e Marcelo Freixo (que era deputado pelo PSOL, hoje está no PT e é presidente da Embratur). Bolsonaro vetou 25 trechos do pacote, mas manteve a emenda. Esse, aliás, foi um dos pontos de desgaste entre Bolsonaro e Moro, que acabou por deixar o ministério.
Em seu voto no julgamento, o ministro Gilmar Mendes usou o caso da Lava Jato como exemplo da utilidade do juizado de garantias. "Quando nós verificamos os episódios de Curitiba (base e origem da Lava Jato), nós sabemos que a 'República de Curitiba' tem porões e esqueletaços. Tudo o que se sabe é ruim", disse.
Mudança
A principal mudança instituída pelo "juiz de garantias" é a divisão da jurisdição do processo criminal. Hoje, quando a polícia abre um inquérito, ele é sempre acompanhado por um juiz, que é quem autoriza diligências mais invasivas, como busca e apreensão, quebra de sigilo bancário e prisão preventiva. Depois, caso a investigação se torne uma ação penal, o mesmo magistrado é quem conduz o processo, avalia provas, ouve os argumentos da defesa e interroga as testemunhas.
Com o juiz de garantias, isso mudo. A jurisdição é dividida, para que o juiz que cuidou do inquérito não cuide do processo criminal. O juiz de garantias será responsável pela primeira etapa do processo, e terá a tarefa de garantir que os direitos de todos os envolvidos serão respeitados. Não é uma mudança pequena, portanto. Justamente por isso, o julgamento vinha se arrastando desde 2019.
Votos
Na retomada do julgamento, ontem, os ministros acompanharam o voto do ministro Dias Toffoli, no sentido de confirmar a constitucionalidade do artigo 3-B da lei anticrime - o artigo que institui a mudança. Já haviam votado nesse sentido os ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e André Mendonça.
Em seu voto, Kassio ressaltou que a Constituição não impõe nem proíbe o juiz de garantias, estando sua criação dentro da "margem de discricionariedade" do legislador. Ele classificou a implementação da dinâmica como a "maior mudança do processo penal brasileiro desde o Código de Processo Penal", instituído em 1941. Indicou que, mesmo após o modelo entrar em vigor, surgirão novos questionamentos a serem enfrentados pelo Judiciário.
Segundo Kassio, que integrou o Tribunal Regional Federal da 1ª Região antes de ser alçado ao STF, "haverá um aumento de custos seguramente", mas é possível a implementação do modelo. Ele sugeriu um prazo de até 36 meses para que os tribunais de todo o País se adaptem à nova dinâmica, mas sinalizou apoio ao prazo inicialmente proposto por Toffoli, de 12 meses. Indicou ainda que deve haver um "reconhecimento" em caso de tribunais que realizem uma "implementação mais célere" do modelo.
Prazo
O ministro Edson Fachin se manifestou sobre a constitucionalidade do juiz de garantias logo no início de seu voto. Ele ressaltou que a Corte ainda deve discutir o prazo de implantação do modelo, mas indicou que segue o posicionamento de Dias Toffoli.
Durante seu pronunciamento, o ministro fez referência ao Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), já citado em outros momentos do julgamento. Trata-se de um grupo de magistrados de São Paulo que fiscalizam investigações policiais e autorizam diligências, inclusive medidas cautelares. Concluído o inquérito, os autos são distribuídos para uma vara criminal, para processamento do caso por juiz que nunca teve contato com a investigação.
O relator, Luiz Fux, segue isolado quanto à implementação do juiz de garantias. O ministro defendeu tornar facultativa a implementação. Foi uma decisão liminar de Fux que travou a implementação da mudança, inicialmente prevista para entrar em vigor em 23 de janeiro de 2020. Ele afirmou que esperou o "amadurecimento" do debate para pautar o julgamento.
Como relator das ações, Fux abriu a votação, na sessão de 28 de junho. O ministro precisou de duas sessões para concluir a leitura do voto, que tem mais de 200 páginas. Em diversos momentos, afirmou que a aprovação do texto no Congresso foi "açodada" e provocará mudanças profundas no Código Penal.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que apresentou a ação contra a implementação do juiz das garantias, divulgou nota AMB dizendo que está pronta para auxiliar os magistrados na execução das determinações previstas na legislação. "É fundamental, porém, que a implantação do novo modelo se dê dentro de um prazo razoável e com respeito à autonomia dos Tribunais", diz o documento.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.