O Ministério da Fazenda estuda uma mudança contábil que pode, na prática, reduzir a base de cálculo do piso constitucional da Saúde nos próximos anos, exigindo da administração pública a aplicação de valores menores nessa área.
POR IDIANA TOMAZELLI
A medida também tem potencial de interferir nos limites de despesa com pessoal previstos na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), e no valor obrigatório das emendas parlamentares indicadas pelo Congresso Nacional.
A proposta consiste em mudar o critério de cálculo da RCL (receita corrente líquida), excluindo algumas fontes de arrecadação mais voláteis que hoje são contabilizadas nesse conceito.
Como a aplicação mínima de recursos na Saúde, o patamar máximo de gastos com folha de salários e o volume de emendas parlamentares são estimados como proporção da RCL, a alteração teria como consequência uma redução desses valores de referência.
A mudança consta em minuta de projeto de lei complementar para instituir o novo "Regime de Reequilíbrio Fiscal dos Estados e do Distrito Federal". A íntegra do texto foi obtida pela Folha.
Procurado, o Ministério da Fazenda confirmou o teor do documento, com a ressalva de que se trata de "uma minuta preliminar em discussão técnica". O projeto ainda precisa passar pelo crivo das "instâncias competentes" dentro da pasta, além de outras áreas do governo.
Apesar da concordância técnica, nos bastidores há uma preocupação política, já que alterar a RCL traz uma série de repercussões, algumas delas mais sensíveis.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já tem sido criticado por sua própria base aliada por pedir o afastamento dos pisos de Saúde e Educação no ano de 2023. As áreas sempre foram bandeiras do PT.
O objetivo é evitar a necessidade de remanejar até R$ 20 bilhões de outras áreas para cumprir o mínimo de recursos em ações e serviços públicos de saúde.
De acordo com a minuta de projeto, o governo pretende excluir da RCL as receitas com concessões e permissões, dividendos e participações, royalties e participações especiais, além da arrecadação obtida com programas especiais de recuperação fiscal, transações e acordos destinados a promover a regularização de créditos. As mudanças valeriam para União, estados e municípios.
A justificativa do governo é que a RCL é referência para o controle de despesas de caráter continuado, e computar receitas não recorrentes ou extraordinárias em sua base "pode criar distorções significativas e colocar em risco a sustentabilidade fiscal dos entes".
Retirá-las, na visão da Fazenda, é uma "medida saudável", pois evita que receitas voláteis sirvam de lastro temporário para a criação de uma despesa que terá de ser carregada de forma permanente nos orçamentos.
"Ao excluir do cômputo da RCL receitas extraordinárias, como as decorrentes de concessões, permissões e de acordos e transações tributárias, está se adotando maior rigor na mensuração de receita corrente líquida e evitando que indicadores de despesas de pessoal ou de endividamento sobre a RCL sejam momentaneamente distorcidos em função de receitas que não possuem caráter de recorrência", diz a Fazenda.
O governo já havia feito uma adaptação semelhante no conceito de receita líquida ao aprovar o novo arcabouço fiscal. Como a expansão real do limite de gastos é proporcional à variação das receitas, a Fazenda propôs excluir essas mesmas fontes de arrecadação dos números que servem de base para o cálculo do arcabouço.
O novo indicador, chamado de RLA (Receita Líquida Ajustada), inclusive começou a ser divulgado pelo Tesouro Nacional no fim do mês de setembro. A partir dele, é possível identificar que, em 2022, foram descontados R$ 193,6 bilhões em receitas ligadas às fontes que, agora, o governo também quer tirar da base da RCL.
A constatação permite algumas simulações: se a regra constitucional que exige aplicação de 15% da RCL na Saúde já tivesse sido retomada no ano passado, a mudança contábil pretendida pela Fazenda significaria uma obrigação R$ 29 bilhões menor com as despesas da área.
Nas emendas parlamentares, a norma prevê 2% da RCL para indicações individuais de deputados e senadores e 1% da RCL para emendas de bancadas estaduais. Pelos dados de 2022, as reduções seriam de R$ 1,9 bilhão e R$ 968 milhões, respectivamente.
Técnicos ouvidos reservadamente pela reportagem concordam com a avaliação da Fazenda de que a mudança contábil na RCL vai na direção correta de evitar que receitas temporárias ou muito voláteis acabem gerando espaço para criação de despesas permanentes.
Na década passada, por exemplo, o boom nos preços de petróleo turbinou a arrecadação de estados como o Rio de Janeiro, que usou o dinheiro para dar aumentos salariais generosos a seus servidores até 2014. Poucos anos depois, quando essas receitas refluíram, o estado enfrentou dificuldades severas para honrar seus compromissos.
Para o governo federal, a alteração é conveniente porque ajuda a manter a sustentabilidade do novo arcabouço fiscal no futuro.
A retomada da vinculação dos pisos constitucionais de Saúde e Educação à dinâmica da arrecadação já vinha sendo uma fonte de preocupação da equipe econômica, uma vez que a expansão dessas despesas se dará de forma mais célere do que o ritmo de ampliação do limite de gastos que vai crescer entre 0,6% e 2,5% acima da inflação ao ano.
O piso da Educação, porém, é calculado sobre a receita líquida de impostos, conceito até agora não alcançado pelas mudanças.
Já o impacto negativo sobre o valor das emendas também precisará ser dialogado com cautela com o Congresso Nacional, que tem seguido uma tendência contrária, de carimbar um valor cada vez maior de recursos para sua própria indicação.
Além disso, estados e municípios hoje dentro das regras de gasto com pessoal podem acabar estourando os limites de 60% da RCL para esse tipo de despesa, situação que travaria a concessão de novos reajustes ou a contratação de servidores.
Como a verificação é feita de forma individual entre os Poderes, até mesmo Judiciário e Legislativo, que normalmente têm quadros menores de servidores e contam com folga em seus limites, podem enfrentar algum tipo de restrição.
Em nota à Folha de S.Paulo, o Ministério da Fazenda afirma que, em seus estudos internos, avalia a possibilidade de estabelecer um "período de transição" para que todos os entes consigam se adequar aos limites levando em consideração o novo critério contábil da RCL.
A pasta não respondeu se a alteração pretendida pode facilitar o cumprimento do piso da Saúde nos próximos anos.
ENTENDA A MUDANÇA EM ESTUDO
O que é a RCL?
A receita corrente líquida (RCL) é um conceito contábil, definido na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que serve de referência para uma série de indicadores de finanças públicas. Ela também é a base de cálculo para gastos mínimos com Saúde no âmbito federal e despesas com emendas parlamentares.
Como a RCL é calculada hoje?
A receita corrente líquida é obtida a partir do somatório das receitas tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços, transferências correntes e outras receitas também correntes, deduzidas:
- transferências constitucionais ou legais da União aos estados e municípios, ou transferências constitucionais dos estados para as prefeituras
- contribuições de empregadores e trabalhadores à Previdência Social
- contribuições ao PIS/Pasep
- contribuições para o custeio da Previdência dos servidores
- receitas de compensação financeira entre regimes previdenciários
Qual é a proposta do governo?
O Ministério da Fazenda defende excluir da RCL as receitas obtidas por União, estados e municípios com:
- concessões e permissões
- dividendos e participações
- exploração de recursos naturais (royalties e participações especiais)
- programas especiais de recuperação fiscal, transações e acordos destinados a promover a regularização de créditos
Qual o tamanho da mudança?
O efeito vai depender do tamanho da arrecadação com esses quatro itens em cada ano. Em 2022, segundo dados do próprio Tesouro Nacional, teriam sido abatidos R$ 193,6 bilhões.
Que áreas seriam afetadas pela mudança?
A RCL é referência ou base de cálculo para indicadores relevantes. Veja alguns exemplos:
- Aplicação mínima de recursos na Saúde: 15% da RCL
- Emendas parlamentares: 2% da RCL para emendas individuais e 1% da RCL para bancadas estaduais
- Limite de gastos com pessoal: 50% da RCL para União e 60% da RCL para estados e municípios