Personagem central na investigação da suposta trama golpista, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid mudou cinco vezes sua delação e isso será um dos principais argumentos das defesas dos outros réus para tentar desqualificar as acusações no julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF)
Por Eduardo Gonçalves - O globo
Ao longo de um ano e quatro meses em que prestou 12 depoimentos, o tenente-coronel elevou a gravidade dos fatos e mudou versões até incluir o ex-ministro Walter Braga Netto como peça-chave de uma reunião na qual teriam sido discutidas ações para promover o “caos social”.
As alterações e controvérsias, como a divulgação de um áudio em que Cid dizia estar sendo pressionado a falar à Polícia Federal “coisas que não aconteceram”, levantaram questionamentos das defesas dos outros acusados e pedidos de anulação da delação, o que já foi negado pelo STF.
O GLOBO analisou cerca de 250 páginas que tratam do teor dos depoimentos prestados por Cid entre agosto de 2023 e dezembro de 2024. O conteúdo revela que ele mudou de versão em pelo menos duas ocasiões e acrescentou informações novas em outras três. Procurada, a defesa do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro afirmou que o “calendário e forma de coleta” da delação foram definidos pela Polícia Federal e que a colaboração “não teve idas e voltas”. A nota acrescenta que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, homologou a colaboração.
‘Mentiroso’
Como mostrou um levantamento feito com auxílio de inteligência artificial, os advogados dos outros sete integrantes do “núcleo central” tiveram como uma das estratégias a tentativa de desqualificar a delação — Cid chegou a ser chamado de “mentiroso”. O ministro Luiz Fux votou para tornar réus todos os denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR), mas criticou “omissões” nos depoimentos do tenente-coronel e disse que ele foi “a cada hora acrescentando uma novidade”. A ponderação foi vista pelas defesas de forma positiva.
A delação de Cid foi corroborada por outros elementos ao longo da apuração. O tenente-coronel relatou a elaboração de uma minuta golpista e de reuniões para discuti-la, com a participação de Bolsonaro. A informação foi confirmada pelos ex-comandantes do Exército Marco Antônio Freire Gomes e da Aeronáutica Baptista Júnior. Mensagens encontradas no inquérito e registros de entrada no Palácio da Alvorada também reforçaram as declarações.
Cid iniciou a rotina de depoimentos em agosto de 2023, três meses após ser preso no curso da investigação sobre a suposta fraude nos cartões de vacinação de Bolsonaro e da filha — na sexta-feira Moraes arquivou o caso. Naquela ocasião, o militar prestou seis esclarecimentos sobre assuntos como a trama golpista, milícias digitais, vacinas e o suposto desvio de joias da Presidência. No mês seguinte, foi solto por determinação de Moraes e continuou colaborando.
Em março de 2024, deu dois novos depoimentos à PF, com mais detalhes sobre a suposta tentativa de golpe. Omissões e uma série de acontecimentos ao longo do ano passado, no entanto, provocaram reviravoltas. Naquele mesmo mês, ele foi preso novamente, logo após um interrogatório no STF, sob acusação de descumprir medidas judiciais e de obstruir a Justiça. O depoimento foi convocado para que ele explicasse áudios revelados pela revista Veja em que afirmava ter sido pressionado pela PF e fazia críticas aos métodos de Moraes. Depois, disse que havia feito as declarações como um “desabafo” e que se tornou delator de forma “espontânea e voluntária”.
Cid foi solto, mas a análise do conteúdo que havia sido deletado de celulares e computadores do tenente-coronel revelou elementos que haviam ficado fora das declarações, o que fez a PF e a PGR pedirem novas informações, deixando a delação em xeque. Foi aí que o ex-ajudante de ordens deu um passo além. Em 19 de novembro do ano passado, em audiência com Moraes, acrescentou informações relevantes. O novo tom foi antecedido por um aviso: o ministro disse que aquela seria a “última chance” de dizer a “verdade sobre tudo”, além de lembrá-lo que eventual rescisão do acordo poderia levar à “continuidade das investigações” sobre o pai, a mulher e uma das filhas.
Diante das novas circunstâncias, Cid pôs Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, como peça central na formulação do suposto plano golpista. Segundo o delator, o general foi o anfitrião de uma reunião em novembro de 2022, logo após a derrota de Bolsonaro, em que foram discutidas “ações” que provocassem “caos social” para a decretação de um estado de defesa ou de sítio.
“Na reunião se discutiu novamente a necessidade de ações que mobilizassem as massas populares e gerassem caos social, permitindo, assim, que o presidente (Bolsonaro) assinasse o estado de defesa, estado de sítio ou algo semelhante”, relatou Cid, pontuando que foi retirado da reunião pelo general pela sua “proximidade” com Bolsonaro.
A mesma história já tinha sido narrada de outra forma. Em março de 2023, Cid havia dito que a reunião teria sido um encontro comum com o pretexto de levar dois amigos militares a “tirarem uma foto” com Bolsonaro e “darem um abraço” no ex-chefe da Casa Civil. “Que não foi possível encontrar no Alvorada e, diante disso, acertou com o Braga Netto o encontro na casa do general”, disse ele.
Sobre os assuntos ali tratados, Cid listou a “conjuntura nacional do país, a importância das manifestações, o pedido de intervenção militar, se as manifestações podiam ou não estar estar lá”, em referência aos acampamentos em frente a instalações do Exército. Não houve naquele momento menção a discussões para insuflar a ofensiva golpista.
Fato novo
Ainda em março de 2023, Cid chegou a citar uma suposta tentativa de financiamento para o plano golpista. Ele disse que pediu a Braga Netto “para ver” se o PL poderia “apoiar de alguma forma as manifestações”. Já na audiência de novembro de 2024, o delator entregou uma novidade. Segundo ele, o general lhe disse que iria “dar um jeito” e lhe entregou uma sacola com dinheiro algumas semanas depois.
“O general Braga Netto me entrega dinheiro. Era tipo uma coisinha de presente de vinho, com dinheiro. Eu não contei, não sei quanto, tava grampeado. Eu peguei o dinheiro e passei para o De Oliveira (um outro militar que foi denunciado)”, relatou Cid.
Braga Netto foi preso preventivamente em dezembro do ano passado por, segundo a decisão judicial, obstruir a Justiça ao tentar descobrir o conteúdo da delação de Cid, que na época ainda estava sob sigilo. Ele também se tornou réu e nega as acusações. O advogado José Luis Oliveira, o Juca, afirma que ele é inocente e tem “reputação ilibada”.
Outros dois fatos novos apresentados por Cid ao longo do tempo dizem respeito à tentativa de aliados de Bolsonaro de tomarem pé do conteúdo da sua delação. Em 5 de dezembro de 2024, afirmou que o seu pai recebeu ligações de Braga Netto e outras pessoas próximas ao ex-presidente para saberem o que ele tinha entregue aos investigados.
“Basicamente, isso aconteceu logo depois da minha soltura, quando eu fiz a colaboração naquele período, onde não só ele (Braga Netto) como outros intermediários tentaram saber o que eu tinha falado. Isso fazia um contato com o meu pai, tentavam ver o que eu tinha, se realmente eu tinha colaborado”, disse Cid.
À PF, Cid disse que não deu essas informações antes porque se tratava de um “general quatro estrelas e que dosa muitas palavras para evitar estar acusando ou falando de uma autoridade”.