Uma portaria do Ministério da Educação (MEC) publicada na segunda-feira liberou o pedido de novas vagas em cursos de Medicina até o limite de mais cem alunos
Por José Maria Tomazela
A medida vale para as escolas criadas por chamamento público, no âmbito do Mais Médicos. Desde 2013, quando a iniciativa foi criada, o número de escolas no Brasil passou de 210 para 354, um crescimento de 69%. De um lado, as entidades médicas apontam o risco de precarizar as condições da formação. De outro, entidades ligadas ao ensino, principalmente o privado, reclamam do engessamento do processo para criar vagas.
Em nota pública, o Conselho Federal de Medicina (CFM) pediu a imediata revogação da portaria. “Lamentavelmente, essa decisão foi tomada sem consulta ao CFM e às demais entidades médicas. Isso expressa uma opção excludente, autoritária e pouco transparente na condução de tema delicado e com consequências para a vida da população e dos profissionais”, afirmou. Conforme o conselho, a portaria possibilita a criação de 37 mil vagas em cursos já existentes, “milhares delas em municípios que não oferecem condições necessárias para o pleno processo de ensino e aprendizagem”.
Conforme a Associação Médica Brasileira (AMB), o País tem 570 mil médicos distribuídos de forma inadequada, problema que a portaria do MEC não corrige. “Considerando que não temos uma carreira nacional do médico, o que facilitaria a correta distribuição dos profissionais, a AMB se posiciona contra a abertura de novas escolas médicas ou o aumento de vagas nos cursos de Medicina. A AMB entende que a prioridade neste momento é a melhoria da qualificação da graduação médica das instituições de ensino já existentes”, disse.
O ministro da Educação, Victor Godoy Veiga
Consultor em ensino superior, o advogado Edgar Jacobs acredita, porém, que se abre a possibilidade de melhorar a distribuição de médicos e suprir a falta deles pelo País. “Quando comparamos com outros países, o Brasil é apenas o 79.º em densidade médica (médicos por mil habitantes), e eles estão mal distribuídos. Essa medida reconhece a dinâmica da oferta de leitos e espaços de treinamento na área de saúde, na medida em que permite que cursos que obtiveram aportes menores, de 30 ou 50 vagas, possam requerer novamente a ampliação, quando o contexto da oferta de saúde mudar”, disse.
Já para o professor Mario Scheffer, pesquisador e docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), é muito preocupante a decisão. “Do início do governo Bolsonaro até agora, o MEC liberou 37 novos cursos de Medicina, dos quais apenas três em universidades públicas. Foram autorizadas 4.500 vagas de graduação, 96% delas privadas, que cobram R$ 8.500 de mensalidade, em média. Com Temer (ex-presidente Michel Temer), em 2018, o MEC chegou a suspender novos editais para criação de cursos e vagas durante cinco anos. Decretou-se uma ‘moratória’ de araque, pois foram abertos cursos e vagas sem parar.” Segundo ele, antes da Lei do Mais Médicos, da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2013, o Brasil formava 20 mil médicos por ano. “Hoje vai formar 40 mil por ano.”
Segundo Scheffer, o atual governo seguiu abrindo muitas vagas, mas abdicou da avaliação da qualidade do ensino médico. “Não sabemos como estarão sendo formados milhares de jovens médicos que passam a atender a população imediatamente após a formatura. Também registramos que não há vagas de residência médica para boa parte dos formados em Medicina. Isso é seríssimo, abriram a torneira da graduação sem se preocupar com a necessidade de, proporcionalmente, ampliar a oferta da formação especializada via bolsas de residência médica.”
Para o diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior (Abmes), Sólon Caldas, a portaria só regulamenta a de 2018 e não vai precarizar a educação médica, uma vez que todos os cursos são constantemente avaliados pelo MEC. “Está apenas trazendo uma regulamentação”, ressalta.
Segundo ele, a pandemia deixou evidente a falta de profissionais sobretudo na área de saúde. “A possibilidade de abertura de vagas para formação médica é um benefício para a sociedade como um todo, que precisa de mais e melhores profissionais.” A reportagem entrou em contato com o Ministério da Educação e com o Conselho Nacional de Saúde (CNS), mas não obteve resposta até as 19 horas.
USP projeta 816 mil médicos em 2030, mas má distribuição continua no País
Dados do MEC apontam que, juntas, as 354 faculdades de Medicina atuais oferecem 35.642 vagas por ano. O Estado de São Paulo tem o maior número de cursos, 68, seguido de Minas com 48. Os Estados da Bahia (24), Rio (22) e Paraná (22), completam os cinco primeiros no ranking. Já a concentração de médicos ativos é maior nos Estados mais populosos, como São Paulo (165.418), Rio (69.156) e Minas (63.409), segundo dados do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Conforme o professor Mario Scheffer, era preciso ampliar o número de médicos no Brasil, mas isso já foi feito de forma totalmente desordenada. “Acabamos de fazer, na Faculdade de Medicina da USP, dentro do nosso estudo de Demografia Médica, uma projeção da oferta de médicos. Se fosse congelado o número de vagas, sem novas aberturas, teremos 816 mil em 2030.”
O estudo apontou ainda que o aumento recente de médicos, com mais vagas na graduação, não foi capaz de solucionar o problema da falta de médicos em diversas localidades e em determinadas especialidades, como ficou evidente durante a pandemia, no caso dos intensivistas. “Mesmo dobrando o número, os médicos continuam concentrados cada vez mais no setor privado, nos grandes centros e longe dos municípios desassistidos. Ao invés de abrir novas vagas, que deveriam ser congeladas, o momento é de avaliar a qualidade da formação, planejar a residência médica para acompanhar a expansão, e implementar políticas de atração, permanência e melhor distribuição em locais e serviços sem médicos”, diz Scheffer.
O estudo Radiografia das Escolas Médicas Brasileiras, concluído em 2020 pelo CFM, mostrou que 92% das instituições de ensino superior que oferecem vagas para Medicina não atendem pelo menos um dos três parâmetros considerados ideais. Os critérios mínimos para o processo de ensino-aprendizagem, segundo o conselho, são: oferta de cinco leitos públicos de internação hospitalar para cada aluno no município sede do curso; acompanhamento de cada equipe da Estratégia Saúde da Família (USF) por no máximo três alunos, e presença de hospital com mais de cem leitos exclusivos. Conforme o estudo, há casos de 80 alunos por equipe de ESF, um internado acompanhado por três alunos e escolas sem ligação com hospital.