Uma lembrança habita como fantasma a memória de Heloísa de Carvalho. O gotejar na banheira da Escola Júpiter funciona como um clique em sua cabeça. Instantaneamente, a imagem da mãe submersa em um amálgama de sangue e água se faz presente. “Acordei e ela não estava na cama. Quebrei a janela do banheiro com o cotovelo e a vi desacordada. O guru, como de costume, estava na sala com Silvana, a aluna que mais tarde seria sua esposa”. É assim, com muita mágoa, que Heloísa relembra a convivência com seu pai, o astrólogo Olavo de Carvalho, ideólogo do governo e guru do presidente Jair Bolsonaro. Ela o define como “megalomaníaco” e uma fraude, já que ele vivia de dar golpes em amigos. “Está claro que ele tem problemas psíquicos”, diz. Abandonada à própria sorte quando criança, foi vítima de abuso sexual por um parente, não frequentou a escola até os 12 anos de idade e conviveu com a poligamia escancarada do pai, tudo isso antes dos 18 anos. Em depoimento à ISTOÉ, ela destrói Olavo.
Por Guilherme Henrique
Residindo atualmente em Atibaia, na Grande São Paulo, Heloísa de Carvalho não sabe dizer com exatidão quantos endereços teve na vida. “Quando eu morava com o guru, a gente não tinha casa. Não existia essa coisa de sentar à mesa, dividir sentimentos e problemas”, recorda. Ela passou um período morando nos fundos da Escola de Astrologia Júpiter, fundada por Olavo em 1979, em parceria com Marylou Simonsen, filha de Mário Wallace Simonsen (um dos sócios da Panair), e que foi palco da tentativa de suicídio da mãe. Na sua lembrança, esse tempo tenebroso ficou como um dos muitos momentos em que a personalidade e as vontades de Olavo de Carvalho se sobrepuseram às necessidades familiares.
PREMONIÇÃO Durante viagem a Paris, na década de 1990, Olavo faz o gesto que anos depois caracterizaria o bolsonarismo
A experiência nefasta na escola durou até meados de 1980. “Aquilo não ia dar certo. Os sócios tentavam dar as aulas, mas a escola era uma bagunça, crianças correndo pelas salas, uma gritaria danada. Morávamos no fundo da Júpiter, colchão no chão, roupa jogada para todo lado. Uma baderna”, relembra. A decisão de morar na Júpiter partiu da mãe de Heloísa e primeira esposa de Olavo de Carvalho, Eugenia, que mudou-se para lá com os filhos do casal – além de Heloísa, os meninos Luiz Gonzaga de Carvalho e Tales de Carvalho, enquanto que Davi de Carvalho, recém-nascido, foi para a casa da avó materna. “Para colocar a Júpiter em funcionamento, o guru alugou um sobradinho no Tremembé, na zona Norte de São Paulo. Mas, como era de se esperar, ele deu calote no dono do imóvel e não pagou o aluguel. Fomos despejados”.
Pai ausente
Raramente Heloísa chama Olavo de pai. Guru é o termo escolhido por ela. “Eu e meus irmãos fomos criados para idolatrá-lo. Eles seguiram seus passos. Eu, como sempre, nunca dei muita bola para ele”, brinca. Mais velha dos oito filhos do astrólogo, ela recorda-se com desenvoltura das peripécias do atual mentor de Bolsonaro. “Vivíamos sem regra nenhuma. Eu só fui descobrir que precisava tomar banho todos os dias já na adolescência, quando passei um tempo com minha tia Julia”. Ir à escola tampouco era uma preocupação de Olavo. A educação tardia, feita pelo método Mobral, prejudicou o desenvolvimento de Heloísa. “Eu só sabia escrever meu nome e as quatro operações básicas da matemática. Meus irmãos não concluíram os estudos, graças ao desleixo de Olavo”. Já na fase adulta, ela conseguiu finalizar o bacharelado em Direito.
Quando o projeto da Escola Júpiter acabou, Olavo de Carvalho já estava em um outro relacionamento, com Silvana, sua segunda esposa e mãe de Maria Inês e Percival. Entre 1981 e 1982, Heloísa viveu com a madrasta, a irmã mais nova e o pai em uma casa da zona sul de São Paulo. “Era uma mansão, com piscina, duas suítes, closets”, detalha. Nessa época, ela conta que foi matriculada em uma escola particular pelo pai, mas a rotina de estudos durou pouco. “Eu não tinha alimentação, roupa limpa, material escolar, nada. O guru viajava para o Rio de Janeiro e Belo Horizonte e nos abandonava à própria sorte. A Silvana ia para a casa da avó com a filha, porque lá tinha motorista, comida, empregada. Eu ficava sozinha”.
A casa virou um mausoléu irreconhecível, com a piscina suja e a grama tomada pelo mato. Uma noite em que estava sozinha no quarto, Heloísa ouviu passos no quintal. Ao perceber a presença de dois homens forçando a porta da cozinha, escondeu-se no armário. “Só saí do esconderijo quando ouvi a sirene policia. O guru, medroso e cagão como sempre, estava lá fora e não entrou nem para saber como eu estava”.
Traumatizada, Heloísa foi morar com uma tia em Atibaia, mas em meados de 1985 sua mãe foi buscá-la para que ela voltasse ao convívio com o guru. Ao chegar a um sobrado no centro de São Paulo, ela não entendeu nada. Seu pai, cristão e frequentador das missas de domingo no Brás, havia se convertido ao islamismo. “Umas 15 pessoas moravam na casa. Dormíamos em quadriliches. Minha mãe, que já não tinha relação marital com o Olavo, era tida como a matriarca”. Olavo já havia assumido um casamento com Roxane, com quem vive até hoje nos Estados Unidos. Nem por isso se furtava em continuar se relacionando com outras mulheres que freqüentavam a casa, então transformada numa espécie de templo islâmico. Além de Roxane, o guru tinha relações sexuais também com Meri Harakawa e Tereza, que frequentavam o local.
Heloísa conta que Olavo só se converteu ao Islamismo para se beneficiar da bondade alheia. ”As pessoas achavam que ele trabalhava pelo Islã, mas era papo furado. Comerciantes árabes nos mandavam comida, bebidas, roupas. Tinham pena da nossa família e ele se aproveitou disso”. A relação com o islamismo durou até o início 1986, quando a casa “começou a degringolar”. Na mesma época, Heloísa se casou, teve um filho e deixou de viver com o pai. A ida do astrólogo para os EUA, em 2005, foi uma fuga. “Ele me ligou um dia e disse para encontrá-lo em Curitiba. Chegando lá, me disse que precisava sair do país”, afirma. “Ele estava disposto a viver xingando as pessoas, como faz, sem a preocupação de ser processado”. Heloísa está convencida de que ele “sempre odiou o Brasil” e alimentava o sonho de tornar-se americano. Ela diz que a vida de pequenos trambiques que o guru aplicava nos amigos no Brasil, continua na Virgínia. “Quando fica doente, como aconteceu recentemente, ele faz vaquinhas na internet. Aí é fácil ser guru”, brinca.
Desgaste e crises
As desavenças entre Olavo e a filha começaram em 2017, após o lançamento do filme “Jardim das Aflições”, que relata a vida do guru. Heloísa conta que o pai se aproveitou de Daniel Aragão, produtor do filme, excluíndo-o dos créditos e da divisão dos lucros do documentário. “Ele usou o mesmo modus operandi da vida toda: sacanear os outros”, acusa. Uma carta aberta escrita por ela, contando os podres do astrólogo, publicada no mesmo ano, azedou ainda mais a relação.
A guerra familiar, agora, continuará na CPMI das Fake News. Convocada pelo deputado Alexandre Frota (PSBD-SP), Heloísa afirma ter um dossiê contra Olavo e os seus seguidores. “Investiguei durante muitos anos como essas pessoas funcionam. Elas são doentes: vivem na ‘olavosfera’ e fazem de tudo para defendê-lo. Conheço meu pai melhor do que ele: por isso, ele morre de medo de mim”. Por tudo que sabe, Heloísa diz temer pelo futuro do Brasil, já que Bolsonaro não abre mão de ouvir os conselhos do guru. “Por onde ele passa, o caos aparece”. Ainda não há uma data para o depoimento na CPMI, mas ela acredita que os documentos que apresentará em Brasília podem mudar os rumos da vida do astrólogo. Ainda que sofra ameaças de morte e seja perseguida por seguidores do guru, como já acontece, ela não pretende ceder nas denúncias que envolvem os métodos do pai. “Ele tem um velho amigo que o acompanha em todas as suas ações subterrâneas na Internet e que não deixa rastros nos ataques que promove. Se depender de mim, essa pessoa será desmascarada”, afirmou Heloísa. Ela, contudo, diz que só vai revelar quem é essa pessoa na CPMI das Fakes News. A máscara de Olavo está caindo.