Quinze anos depois de o STF vedar a prática do nepotismo, o texto abre brecha para políticos contratarem seus próprios parentes
Por Breno Pires e Camila Turtelli
A Câmara avançou nesta terça-feira, 5, com a aprovação do projeto que afrouxa a Lei de Improbidade Administrativa e dificulta a punição a políticos. O principal ponto é o que prevê condenação por improbidade apenas nos casos em que seja comprovado o "dolo específico", ou seja, a intenção de cometer irregularidade. Assim, mesmo que a conduta de um prefeito ou de qualquer agente público resulte em prejuízo à administração pública, ele só será condenado se for provada a sua intenção.
A proposta já havia sido votada pela Câmara em junho, mas foi alterada por senadores na semana passada. Na sessão, os deputados rejeitaram, por 253 votos contra 162, uma emenda aprovada pelo Senado que tratava sobre a necessidade de "dolo específico" para casos de nomeação política por parte de governantes e legisladores, recuperando a redação original.
Segundo o relator, Carlos Zarattini (PT-SP), a mudança trazia "imprecisão" e que o texto da Câmara "melhor resguarda o interesse público, atenua possibilidade de interpretações ambíguas da norma". "Não há que se falar que essa emenda tratasse do nepotismo. Na verdade ela tratava da exigência de dolo para o nepotismo. Ocorre que o nepotismo, evidentemente, quando se nomeia um parente, se sabe que ela é parente, portanto não é preciso comprovar o dolo, porque todo mundo sabe quem é seu parente", afirmou o petista.
Para o diretor-executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino, porém, o projeto aprovado deixa brecha para interpretações. "A redação dada pelos deputados procura isentar nomeações de primeiro escalão no Executivo de punição por nepotismo. Por exemplo, um prefeito pode nomear como secretário o irmão ou a mulher. Agora vamos ter que aguardar como o Judiciário vai interpretar as situações", disse Galdino.
As mudanças na Lei de Improbidade uniram aliados de Bolsonaro e deputados de oposição ao governo. Parlamentares argumentaram que era preciso atualizar a legislação que permite punir, por exemplo, atraso na apresentação de uma prestação de contas. Atualmente a pena vai de aplicação de multa até a cassação de mandato.
"Quem tem patrimônio, família e honra não quer mais vir para a política", argumentou o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), ao defender a proposta. Alvo de ação de improbidade administrativa por irregularidades durante gestão como ministro da Saúde, ele disse que "a exigência de dolo e dano ao erário vai facilitar muito a vida das pessoas que dedicam seu tempo à administração pública".
O líder do PSDB, Rodrigo Castro (MG), fez coro. "Estamos impedindo injustiças e modernizando nossa legislação. É algo que vai melhorar a vida pública", disse. "É uma matéria que vai ficar para o legado dessa legislatura", acrescentou o líder do MDB, Isnaldo Bulhões (AL), favorável à aprovação do projeto.
Segundo integrantes do Ministério Público, do Judiciário e especialistas, porém, as alterações enfraquecem o combate à corrupção ao deixar brechas para a impunidade. "A lei passa a permitir e tolerar uma grande quantidade de condutas que podem configurar péssima gestão pública, seja por ineficiência grave, seja por desonestidade funcional. Esse é um retrocesso inaceitável no atual momento histórico do Brasil", disse o ex-advogado-geral da União Fábio Medina Osório ao Estadão.
Entre as condutas citadas por Osório que deixam de ser punidas pela Lei de Improbidade estão a "carteirada" de agentes públicos e até mesmo "furar a fila" da vacina.
Outro ponto do texto que favorece políticos é o fim da perda da função pública a condenados que tenham mudado de cargo ao longo do processo. Atualmente, se um deputado é condenado à perda do cargo por atos que praticou no passado, quando era prefeito, por exemplo, ele perde a atual função. Caso Bolsonaro sancione o projeto, essa punição não ocorrerá mais.
Um dos possíveis beneficiários desta medida pode ser o próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que já foi condenado em ações de improbidade na Justiça alagoana e é alvo de outras ações na Justiça Federal no Paraná.
Empresas. Além de gestores públicos, o texto limita as possibilidades de punir empresas e empresários por meio de ações de improbidade. Com a fusão e incorporação de empresas, por exemplo, elas ficariam livres de condenações que, antes disso, poderiam receber.
"Ao estabelecermos mecanismos de proteção do administrador, não podemos criar uma superproteção para as empreiteiras que são as mães da corrupção no nosso País. E muitos dispositivos aqui são para proteger essas empresas", disse o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Herman Benjamin em audiência pública realizada no Senado na semana passada.
A legislação atual foi criada em 1992 para combater a sensação de impunidade, em meio ao impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello.