Neste domingo (13/10), o papa Francisco canoniza Irmã Dulce. Conhecida como o 'anjo bom da Bahia', entre as obras da religiosa está o Hospital Santo Antônio
Por Hellen Leite - Maria Eduarda Cardim
Ela nasceu Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes. Por amor aos pobres, tornou-se Irmã Dulce. Por muitos, foi chamada de “o anjo bom da Bahia” e agora entra para a história da Igreja e do Brasil como Santa Dulce dos Pobres. Com uma vida inteira dedicada aos mais necessitados, Irmã Dulce acreditou na fé em forma de caridade. A freira baiana será a primeira brasileira a ser canonizada após ter o segundo milagre reconhecido pelo Vaticano. A cerimônia, prevista para acontecer neste domingo (13/10), é um marco para a história da Igreja do Brasil.
Com aparência e saúde frágeis, irmã Dulce tinha a força de quem sabe o que quer. Foi combinando delicadeza e persistência que ela ingressou, ainda muito jovem, na vida religiosa. Foram essas mesmas qualidades que a levaram a criar um dos maiores e mais respeitados trabalhos filantrópicos do país: as Obras Sociais da Irmã Dulce (Osid).
Com uma mão, batia na porta de políticos, empresários e bem-nascidos; com a outra, acolhia pobres e doentes. Certa vez, conta o jornalista Graciliano Rocha, escritor do livro reportagem Irmã Dulce: a santa dos pobres (Editora Planeta), a freira pediu dinheiro a um comerciante que cuspiu em uma de suas mãos. Sem se abalar, ela estendeu a mão limpa dizendo que o cuspe era para ela e que, na outra mão, ele poderia colocar a oferta para os pobres.
A imagem paradoxal de Irmã Dulce, frágil e firme, é confirmada por quem esteve por perto da beata em algum momento dos 77 anos vividos pela santa. O consultor de marketing político e empresarial Renato Riella conheceu Irmã Dulce quando criança. Nascido em Salvador, durante a infância Renato morou no mesmo bairro em que Irmã Dulce fundou o Hospital Santo Antônio. “Fui vizinho dela durante muitos anos. Isso aconteceu no final da década de 1950 e início dos anos 1960. Eu tinha uns 8 anos”, conta. Hoje, aos 70, Renato relembra a relação da santa com os vizinhos do bairro. “Ela era muito pequena, mas muito corajosa. Vivia na rua, era disponível, andava de loja em loja pedindo doações”, recorda.
Renato a define como uma grande administradora. “Na época, a obra dela ainda era pequena e uma coisa pessoal. Ela fez tudo com muita garra e depois foi ganhando reconhecimento. Era uma buscadora de recursos para ajudar os pobres. Muito firme, rigorosa e até mesmo brava”, lembra. Apesar de todo rigor, Irmã Dulce sempre falava baixo e era superdiscreta.
Galinheiro
Um episódio, em 1939, mostra o poder empreendedor da santa brasileira. Embora estivesse acostumada a lidar com os pobres doentes, o biógrafo Graciliano Ramos conta que um caso marcou a freira. Quando trabalhava na organização que ela mesma fundou, a União Operária São Francisco, foi abordada por um jornaleiro que ardia em febre implorando para que a irmã não o deixasse morrer na rua. Ela não pensou duas vezes. Levou o garoto para uma casa abandonada em um bairro chamado Ilha dos Ratos. “Primeiro Irmã Dulce pediu a um banhista para arrombar a porta da casinha, depois, levou colchonete, candeeiro, leite e biscoito e instalou o menino no local”, detalha o biógrafo. Em pouco tempo, Irmã Dulce já tinha ocupado cinco casas abandonadas para tratar doentes.
Quando o proprietário dos imóveis descobriu as invasões, ficou furioso. Denunciou a freira à polícia, mas ninguém conseguia fazer com que a Irmã saísse do local e abandonasse os doentes. “Até que o dono das casas foi pessoalmente conversar com Irmã Dulce, e ela acabou o convencendo a ceder o local”, relembra. “Ela era muito boa sensibilizando as pessoas para a causa dos pobres”, conta.
Foram dez anos de atendimento nas casinhas até que em 1949, quando, com 70 doentes, Irmã Dulce ocupou um galinheiro ao lado do Convento Santo Antônio. Foi assim, em um simples galinheiro, que nasceu o Hospital Santo Antônio, o maior da Bahia. É possível fazer um tour virtual pelas obras da freira no site.
Quatro perguntas para Graciliano Ramos / Biógrafo de Irmã Dulce
Como o senhor descreve a personalidade de Irmã Dulce?
Ela sempre foi fraca de saúde, mas tinha uma força interior imensa. Recitava o rosário todos os dias e era uma empreendedora. Mesmo já idosa, tocava o dia a dia de um hospital, então, era acostumada a uma rotina pesada, levantava muito cedo e trabalhava até muito tarde. As freiras da congregação de Irmã Dulce, que conviveram de perto com ela, lembram dela como uma figura muito alegre e bem humorada, que costumava colocar apelidos nas pessoas. Durante 30 anos, ela dormiu sentada em uma cadeira por penitência. É surpreendente.
E como ela era como empreendedora?
Como chefe do hospital, ela era sempre muito atenta. Tinha obsessão por limpeza. Se visse uma coisa suja, mandava logo limpar e, se não tinha ninguém para limpar, ela mesmo limpava. Mesmo aos domingos, era comum vê-la com o escovão na mão. O hospital estava sempre limpo. Como era público, vivia superlotado, algumas pessoas eram atendidas no corredor, mas era um corredor impecável. A prova disso é que o índice de infecção hospitalar lá era muito abaixo dos outros hospitais.
Com frequência comparam Irmã Dulce com Madre Teresa de Calcutá. O senhor vê essas semelhanças?
Santa Teresa de Calcutá esteve no Brasil em julho de 1979 e encontrou Irmã Dulce. Elas se pareciam pelo fato de serem religiosas da mesma geração e por acreditarem que a vocação religiosa estava ligada ao acolhimento dos pobres. Ambas foram licenciadas de suas ordens religiosas. As diferenças entre elas estão basicamente no que cada uma fazia com os doentes. Santa Teresa de Calcutá recebeu muitas críticas por que as casas dela eram casas onde as pessoas não tinham um tratamento médico completo, muitas eram acolhidas e esperavam a hora da morte. No hospital de Irmã Dulce não era assim. Deus podia curar, havia oração, mas quem dava o diagnóstico e definia o tratamento eram os médicos.
Qual foi o impacto social, cultural e religioso de Irmã Dulce para a Bahia?
Hoje em dia temos saúde pública como um direito, mas no passado não era assim. Na Salvador dos anos 1950, os pobres não tinham atendimento, só podia ser atendido quem tinha carteira assinada. O colapso social na saúde só não foi maior por causa da Irmã Dulce. Obviamente, ela não resolveu todos os problemas da cidade, mas foi fundamental para centenas de milhares de pessoas. Ela ofereceu um exemplo de humanidade para gente de todas as religiões. Foi uma mulher que deu seu melhor e não se deixou contaminar pelo egoísmo. Na minha opinião, foi a brasileira mais espetacular do século 20. Ela antecipou em muitas décadas a chegada da mulher a posições de poder.
Papa João Paulo II mudou programação em visita ao Brasil para abençoar Irmã Dulce em hospital, há 29 anos
O Papa João Paulo II teve seu último encontro com Irmã Dulce em 20 de outubro de 1991, durante sua passagem por Salvador. Aos 77 anos, a freira estava internada havia nove meses no Hospital Santo Antônio, uma de suas obras, inaugurado em 1983. Em um quarto improvisado como UTI, ela já não conseguia falar e tampouco se mexer. Foi ali, no leito, que a religiosa recebeu a bênção do pontífice. Um encontro se futuros santos: a brasileira será canonizada neste domingo pelo Papa Francisco, o mesmo que canonizou João Paulo II, em 2014.