Por *Kleber Cabral | Para o Valor
No discurso oficial, o trabalhador classificado pelo governo como “rico” – aquele que tem carteira assinada e ganha mais de um salário mínimo -, se aposenta cedo, e os mais pobres, sem tempo de contribuição necessário, se aposentam por idade. Na prática, afirmam os defensores da Nova Previdência, para a maioria da população já existe idade mínima: 65 anos para homens e 60 para mulheres. Metade do tempo gasto na propaganda do governo é dedicado a projetar os servidores públicos como os grandes responsáveis pelo déficit. Na narrativa oficial, servidores seriam uma espécie de grupo de elite que, de forma injustificada e sem qualquer contrapartida, se aposenta com valores muito acima do teto do Regime Geral de Previdência. Em resumo, a reforma da Previdência supostamente combateria privilégios, fazendo com que pobres e ricos possam se aposentar com as mesmas regras.
No entanto, o esforço discursivo do Planalto não encontra respaldo nos números, ao menos em relação ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores civis da União. O sistema é deficitário em decorrência de equívocos legislativos e regras lenientes do passado, que permitiram o surgimento de um grande contingente de aposentados que pouco contribuíram, a exemplo dos ex-celetistas que se tornaram estatutários após a Constituição de 1988. Em um sistema em que há um ativo para cada aposentado, obviamente não há equilíbrio financeiro. Mas isso não pode ser imputado à conta dos atuais servidores.
Dados levantados pelo Instituto Fiscal Independente (IFI) do Senado mostram que o déficit do RPPS civil da União caiu de 1,2% para 0,7% do PIB, de 2003 a 2018. Isso porque as duas reformas ocorridas em 1998 (Emenda Constitucional 20) e em 2003 (Emenda Constitucional 41) conseguiram equilibrar, no longo prazo, as contas do sistema. Para o servidor público, já existe idade mínima desde 1998 (60 anos, se homem, 55, se mulher) e não existe aposentadoria integral desde 2003. Ademais, os que ingressaram após 2013 estão submetidos às mesmas regras do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), incluindo o teto. Os que ingressaram antes disso contribuem para a Previdência sobre o total da remuneração, inclusive sobre o que ultrapassar o teto do RGPS. Portanto, não deveria causar indignação que a aposentadoria seja calculada de forma proporcional aos valores recolhidos ao longo da vida. Ainda, os servidores contribuem para a Previdência mesmo após a aposentadoria, desde a EC 41/03.
Mesmo com mudanças muito mais drásticas para os servidores públicos, a economia prevista pelo governo, em 20 anos, será de R$ 413,5 bilhões no RPPS, o que corresponde a apenas 9% do total no período. Enquanto isso, sobre o RGPS o impacto projetado é de R$ 3,5 trilhões. A escolha do servidor como uma espécie de inimigo público decorre sobretudo de uma estratégia de comunicação, que busca confundir os trabalhadores, fazendo-os pensar que ricos são os outros. Nos cálculos com os quais o governo trabalha, se você ganha mais de um salário mínimo, você é “rico”. Se você pretendia se aposentar por tempo de contribuição, antes dos 65 anos, você está na “elite”. Isso vale para o zelador do prédio, para o trabalhador da construção civil, para o chefe do almoxarifado do supermercado. Todos “privilegiados”.
É preciso que fique claro: os maiores prejudicados, com o texto proposto, serão aqueles que possuem carteira assinada e contribuíram efetivamente para a sustentação do sistema ao longo de suas vidas. São esses “ricos”, que ganham de 2 a 5 salários mínimos, que agora irão se aposentar com as mesmas regras dos “pobres”, aos 65 anos de idade, direto e sem escala.
Mas nem os “pobres” escapam. Atualmente, a lei exige tempo mínimo de 15 anos de contribuição para a aposentadoria por idade. A reforma estende esse tempo para 20 anos, o que fatalmente fará com que alguns milhões de brasileiros jamais consigam se aposentar por idade, restando, se preenchidos os requisitos, o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Aliás, nessa modalidade de assistência social o governo pretende economizar R$ 651 bilhões em 20 anos, mediante postergação do pagamento integral do BPC a partir dos 70 anos.
Estudo do IFI publicado há poucos dias detalha os números do impacto no RGPS, reforçando os argumentos acima. Na aposentadoria por idade, espera-se uma economia de R$ 143 bilhões em dez anos. Essa contenção é feita exclusivamente em cima dos mais pobres, justamente pela maior dificuldade na obtenção do benefício, e pelo aumento da idade para as mulheres. Na aposentadoria por tempo de contribuição, o grosso da economia: R$ 352 bilhões na próxima década. Na linguagem do governo, são os “ricos”, aqueles que, em um universo de milhões de miseráveis, têm o “privilégio” de ganhar de 2 a 5 salários mínimos. Outro quinhão é tirado das pensões por morte: R$ 100 bilhões. Outra vez dos “ricos”, que deixarão para suas viúvas ou viúvos 60% (hoje é 100%) do valor de sua “rica” aposentadoria. Para pensionistas de servidores públicos já existe um redutor de 30% sobre o excedente ao teto do RGPS. Com a nova regra, ficará menos da metade para o cônjuge sobrevivente.
Não se questiona a necessidade de ajustes nas regras atuais de aposentadoria. Não se pode ignorar o avanço da longevidade, a mudança da pirâmide etária, a redução do número de filhos por família. Qualquer um que defenda o sistema de repartição precisa considerar esses fatores. Mas se houvesse maior rigor do governo no lado das receitas, no combate à sonegação, na redução dos benefícios fiscais sem retorno social, na cobrança administrativa dos grandes devedores, estaríamos discutindo uma reforma da Previdência socialmente mais justa e menos traumática.
* Kleber Cabral, auditor fiscal da Receita Federal e presidente do Sindifisco Nacional
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