Tiago Mali, Julia Affonso - UOL
A nove quilômetros do Congresso, em uma mansão no Lago Sul de Brasília, Gabriel Lemos de Andrade Pereira, 40 anos, despacha. Ele não é parlamentar nem servidor, mas é o autor oculto de ao menos 104 projetos, emendas e requerimentos apresentados por deputados e senadores nos últimos seis anos.
Pereira é funcionário do Instituto Pensar Agro, que defende interesses do agronegócio, e integra um grupo de lobistas com acesso privilegiado ao poder.
Nos últimos dois meses, o UOL analisou 345 mil documentos do Congresso, com a ajuda de um software estatístico, e identificou cerca de 2.000 proposições (projetos de lei, requerimentos e outras medidas) redigidas por lobistas desde 2019 —os textos receberam o aval de parlamentares de diferentes partidos.
Entre eles, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).
Há quatro anos o deputado incluiu, em uma medida provisória que tratava de isenções fiscais na pandemia, uma emenda que mudou a tributação das bets no país. O texto acabou reduzindo os impostos dessas empresas.
Quem redigiu originalmente o texto, no entanto, foi uma advogada de escritório que trabalhava para empresas de jogos.
A identificação das digitais dos lobistas foi possível pois toda proposta legislativa assinada formalmente pelos deputados é apresentada em formato de arquivo digital de texto.
Esse arquivo contém rastros —os chamados metadados— que permitem revelar o autor originário dos documentos.
Com a ajuda de ferramentas que captam essas informações, a reportagem se debruçou sobre os arquivos para medir o tamanho da influência de empresas e entidades nas decisões que passam pelo Congresso.
Casa do Pensar Agro, no Lago Sul de Brasília; no destaque, reunião entre integrantes do instituto e parlamentares no local
Casa do Pensar Agro, no Lago Sul de Brasília; no destaque, reunião entre integrantes do instituto e parlamentares no local Imagem: Julia Affonso/UOL
Outra proposta, para zerar tributos de remédios, veio por emenda do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP), mas foi escrita por um funcionário do sindicato da indústria farmacêutica.
Algo parecido ocorreu no projeto que previa o cancelamento do programa de alimentação saudável nas escolas: a assinatura era da deputada federal Roberta Roma (PL-BA), mas o texto veio da Abia, associação da indústria de alimentos.
A sugestão de alterar a proibição de venda de dados de saúde? Foi elaborada pela superintendente jurídica da rede de laboratórios Dasa, representando a associação da indústria de tecnologia e saúde.
O lobby é uma atividade legal no Brasil, mas sem regulamentação e transparência.
Os parlamentares não têm obrigação de divulgar as agendas e, com isso, a sociedade fica sem saber quem eles receberam nos gabinetes.
Não sabemos com quem interagiram em encontros sociais e muito menos de onde partiu o texto das propostas legislativas que eles apresentaram.
É direito de qualquer pessoa ou empresa tentar influenciar o debate legislativo. O problema é quando isso ocorre sem dar transparência a essa influência e quando o acesso aos congressistas é desigual, segundo especialistas.
Entidades empresariais estão por trás de quase 60% dos textos de lobistas identificados pelo UOL, que a partir de hoje publica uma série de reportagens para mostrar as "digitais do lobby".
Essas "marcas" ficaram registradas em propostas de diversos segmentos —da indústria alimentícia ao setor aéreo, passando por empresas de energia solar, o agronegócio e os sites de apostas.
Motta e as bets
O "jabuti" apresentado por Hugo Motta, incorporado a uma MP convertida em lei em 2021, criou uma nova forma de tributar apostas de quota fixa -aquelas em que o apostador já sabe de antemão o prêmio.
Na prática, a mudança reduziu impostos sobre as bets.
No Congresso, "jabuti" é o jargão usado para um texto sem relação com o objetivo original do projeto. O tema da MP em que Motta incluiu o artigo sobre bets era sobre medidas para lidar com efeitos econômicos da pandemia.
O arquivo digital da proposta do deputado carrega o nome "Bárbara Teles" no campo de autor.
"A gente representava empresas do setor [de apostas] que tinham interesse na medida", explica a advogada Bárbara Teles, redatora da medida, que na época trabalhava no escritório M. J. Alves e Burle.
Segundo ela, outros advogados que atendem o setor também contribuíram com o texto encaminhado a Hugo Motta. Teles diz não lembrar o nome da empresa específica para a qual prestou o serviço.
A aprovação da medida foi uma vitória para as bets, atendendo ao pleito de que não fosse feita uma tributação sobre todo o dinheiro apostado, mas sobre a arrecadação bruta depois da premiação paga aos apostadores.
O setor argumenta que o Brasil adotou um padrão praticado internacionalmente.
Bárbara Teles, que também trabalhou na bet Rei do Pitaco e na Associação Brasileira de Fantasy Sport, afirma que normalmente buscava parlamentares menos conservadores.
Diz, porém, que apesar de a bancada evangélica ser em princípio contra apostas, o Republicanos sempre foi um partido aberto a conversar e entendeu os pleitos do setor.
Questionado sobre a emenda, Motta disse em nota ser "natural do Parlamento o diálogo com os mais diversos setores".
O UOL perguntou, então, por que ele acatou integralmente a sugestão feita pela advogada, em vez de produzir uma proposta de próprio punho sobre o tema. O parlamentar não respondeu.
Reforma tributária, o "lobbypalooza"
Todos os dias congressistas apresentam mais de uma centena de propostas legislativas -só na Câmara foram 61.469 documentos em 2024, o que equivale a 168 por dia.
Entre documentos apresentados desde 2019, a reportagem identificou 2.176 arquivos em que o metadado de autor indica o nome de um lobista ou de uma entidade interessada no assunto.
Só na reforma tributária, o UOL encontrou 357 emendas relacionadas a lobistas.
Uma delas partiu do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás) e uniu congressistas de campos políticos opostos.
Washington Quaquá (PT-RJ) e Eduardo Pazuello (PL-RJ)
Os textos tentaram retirar o imposto seletivo do petróleo e gás natural ou, pelo menos, da exportação desses bens.
Pazuello e Quáquá confirmam que a emenda veio de solicitação do IBP para apoiar o setor, "um dos que mais contribui para o fortalecimento da economia", segundo o petista.
Matias Lopes também aparece em arquivos de quatro outras sugestões sobre o mesmo tema.
Os deputados Pazuello, Waldemar Oliveira (Avante-PE) e Altineu Côrtes (PL-RJ) assinaram uma emenda com as digitais do IBP. As demais foram apresentadas por Kim Kataguiri (União Brasil-SP), Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB) e Mecias de Jesus (Republicanos-RR).
O IBP conseguiu aprovar o fim do imposto seletivo na exportação dos combustíveis, mas a norma foi vetada em janeiro pelo presidente Lula (PT).
A entidade afirmou à reportagem que participou ativamente do debate e segue em diálogo com as autoridades após o veto.
Os mais de 2.000 documentos identificados pela reportagem são a ponta de um iceberg. Muitas das propostas analisadas aparecem sem informação de autoria ou com dados que não permitem confirmar de quem se trata.
A reportagem identificou também textos que levavam oficialmente a assinatura de parlamentares, sem metadados de autoria, mas que eram idênticos a emendas de lobistas.
Isso pode acontecer quando um congressista copia e cola o texto num documento novo —que não carrega, portanto, a indicação anterior de autoria. Estes textos não entraram na conta.
Ainda há na lista uma série de escritórios de advocacia —que guardam segredo sobre os clientes que os contrataram para o lobby, por isso não é possível saber que interesse estava sendo atendido.
O dia a dia do lobby
"Semanalmente, de 2.000 a 3.000 pessoas externas circulam pelos corredores [do Congresso]. No mínimo, 50% estão lá para acompanhar ou interagir defendendo interesses", afirma Jean Castro, presidente da Abrig (Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais).
Ou seja, com 1.000 a 1.500 lobistas circulando para 594 congressistas, as chances de esbarrar em um lobista andando pelo Congresso são maiores do que as de encontrar um dos parlamentares.
Parte deles é credenciada nas duas casas. Dados obtidos pelo UOL via LAI indicam que o número de representantes de empresas e entidades de classe cresceu 46% de 2023 para este ano, na Câmara, enquanto aqueles que trabalham para órgãos públicos diminuíram 23% no mesmo período.
Há 2.906 registros desses profissionais no Ministério do Trabalho, mas a Abrig estima que sejam 10 mil em atividade no Brasil. "Muitos ainda não se reconhecem como lobistas", diz Castro.
A maioria se apresenta como integrante de associações setoriais. Há também uma série de consultorias contratadas por essas associações.
Nossa atividade inclui produção de estudos, análises e minutas de propostas legislativas. As minutas são enviadas aos clientes que as entregam aos parlamentares.
Lucas Aragão, sócio da consultoria Arko Advice
A Arko Advice foi a consultoria que mais apareceu na autoria dos documentos identificados pelo UOL, com 308 medidas apresentadas por congressistas.
As propostas com a assinatura da empresa concentraram-se em requerimentos. Parte do trabalho do lobby é fazer com que especialistas que defendem seus argumentos sejam convocados às audiências públicas, exatamente por meio desses requerimentos.
É comum que minutas como as produzidas pela Arko sejam apresentadas pelos congressistas sem alteração em relação ao texto original. É possível saber isso porque há muitas emendas de diferentes parlamentares com textos idênticos.
Por exemplo: uma proposta que beneficiou cooperativas agrícolas na reforma tributária foi apresentada oito vezes em diferentes emendas com assinatura de parlamentares. Em todos os arquivos, a mesma autoria: Gabriel Lemos, do Instituto Pensar Agro, mencionado no começo do texto.
O levantamento também encontrou um documento escrito pelo lobby que foi apresentado sem nem sequer preencher a assinatura do deputado Celso Maldaner (MDB-SC).
Emenda com digital de autoria da Contag apresentada pelo deputado Celso Maldaner, que deixou o campo "Deputado" sem preenchimento
O corpo a corpo
Estudiosos do lobby dizem que a atividade ocorre dentro das regras.
"O parlamentar precisa se pronunciar sobre assuntos nos quais não tem expertise. É natural que busque assessoramento. Às vezes é com a consultoria legislativa, às vezes é com entidades empresariais e da sociedade civil", explica Manoel Leonardo Santos, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Além de ser comum que apresentem os textos do lobby sem alterações, congressistas às vezes pedem mudanças aos próprios agentes privados, conforme o UOL apurou. Assim, os lobistas redigem e editam o próprio texto depois de indicação do parlamentar.
Para especialistas, a facilidade de um parlamentar apresentar rapidamente qualquer proposta ajuda a explicar em parte a quantidade de propostas com as digitais das entidades.
"O que determina o sucesso, no entanto, é a militância que o lobista faz para que aquele texto vá em frente", avalia Wagner Mancuso, professor da USP (Universidade de São Paulo).
É por isso que há o "corpo a corpo" permanente dentro do Congresso, especialmente nas comissões, lideranças e gabinetes.
Uma parte cada vez mais importante desse trabalho tem ocorrido em jantares -com vinhos de R$ 1.000-, seminários e congressos promovidos pela indústria do lobby.
A ideia de promover eventos é mostrar que o parlamentar é seu aliado e, por outro lado, pegá-lo numa situação em que ele esteja com a guarda baixa, mais disposto a conversar.
Jorge Mizael, da consultoria Metapolítica
É comum parlamentares serem convidados para eventos com viagens e pedirem para levar as esposas. Como não há regulamentação nem proibição, o lobby paga a conta e poucos ficam sabendo.
"Em Brasília, nada você resolve no plenário. O único lugar que você já tem que chegar resolvido a sua vida é o plenário", afirmou o ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) em um vídeo divulgado recentemente em uma rede social.
"[Você] não pode perder um evento, um jantar, uma festa, uma reunião, porque ali é onde está todo mundo conversando e onde você está resolvendo as coisas."
O deputado Arthur Lira (PP-AL), ex-presidente da Câmara
Nada dessa atividade é ilegal.
"A democracia garante que grupos da sociedade possam participar do debate e apresentar dados, propostas, demandas e informações", afirma Marcela Machado, da UnB (Universidade de Brasília.)
O principal problema é que a atividade hoje acontece dentro do Congresso com baixíssima transparência, sem que a sociedade tenha acesso amplo aos registros de interações entre os lobistas e políticos.
"É fundamental lançar luz sobre as organizações que atuam na área. Decisões políticas resultam de processos nos quais muitos atores interagem. Entre esses atores, os que representam interesses organizados", diz Ciro Resende, que pesquisa lobby na UFMG.