Avaliação é que medida pode incentivar remoção de conteúdos legítimos; pesquisadores citam ainda risco em redes precisarem interpretar Lei
POR PATRÍCIA CAMPOS MELLO
O governo Lula deve entregar na semana que vem ao Congresso Nacional sua proposta de regulação de internet. Ela inclui punições às big techs para violações da Lei do Estado Democrático e de direitos da criança e do adolescente, além de exigir transparência algorítmica e em publicidade online.
O texto será encaminhado e discutido com o deputado Orlando Silva (PC do B-SP), relator do PL das Fake News. A ideia é incorporar as propostas do governo a uma versão simplificada do projeto do deputado, que está tramitando há três anos, mas há divergências importantes.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não aceita a medida que daria imunidade a parlamentares nas redes sociais. No entanto, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não abre mão da blindagem. A imunidade foi uma de suas promessas de campanha para a reeleição à presidência da Câmara dos Deputados.
Dois outros pontos do projeto de lei geram controvérsia: a medida que prevê pagamento de conteúdo jornalístico pelas plataformas e a que impõe regras sobre publicidade online.
A proposta do governo institui responsabilidade civil das plataformas por conteúdo que viole a Lei do Estado Democrático de Direito, que veda pedidos de abolição do Estado de Direito, estímulo à violência para deposição do governo ou incitação de animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes.
O texto também proíbe conteúdo que viole o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) mesmo antes de ordem judicial. No caso do ECA, já há precedente jurídico de decisões que vão nessa linha.
A proposta flexibiliza a imunidade às empresas concedida pelo Marco Civil da Internet, principal lei que regula a internet no Brasil. Sancionado em 2014, ele determina que as plataformas só podem ser responsabilizadas civilmente por conteúdos de terceiros se não cumprirem ordens judiciais de remoção.
Segundo o texto do governo, as plataformas só seriam responsabilizadas se tivessem conhecimento sobre o conteúdo ilegal e não agissem. É o chamado "notice and action" que está na Lei dos Serviços Digitais que acaba de entrar em vigor na União Europeia.
As plataformas precisariam ter um canal de denúncias de fácil acesso. Quando recebessem denúncias, teriam de analisá-las e decidir se o conteúdo viola a lei e deve ser removido. Se não agirem e o conteúdo for considerado ilegal, poderão ser responsabilizadas.
A cada seis meses, as empresas teriam de publicar um relatório sobre o chamado "dever de cuidado", especificando denúncias sobre conteúdo supostamente ilegal, remoções de postagens que violam a lei e medidas de mitigação para isso. Os relatórios passariam por uma auditoria independente.
As empresas não seriam punidas se deixassem passar um ou outro conteúdo ilegal, elas só seriam multadas se houvesse descumprimento generalizado do "dever de cuidado".
Não há consenso no governo sobre a criação de um órgão regulatório para avaliar os relatórios.
O texto não inclui detalhamento específico de conteúdos que violam a lei. Dessa forma, ficaria a cargo das plataformas interpretar a legislação e determinar o que deve ser tirado do ar. Especialistas temem que isso possa levar as plataformas a removerem conteúdo em excesso para evitar responsabilização.
Há ainda demanda do Ministério dos Direitos Humanos de ampliar o escopo da lei para abranger discurso de ódio, mas não há acordo no governo.
O texto também determina transparência algorítmica. Com isso, as plataformas teriam de explicar por que os usuários recebem determinadas recomendações e como funciona o sistema que determina o que os internautas veem e o que deixam de ver.
Uma medida polêmica é a que exige consentimento prévio dos usuários para os aplicativos poderem rastreá-los para uso dos dados por anunciantes. A medida é semelhante à regra de privacidade adotada pela Apple em seus aparelhos em 2021, que resultou em uma queda de cerca de US$ 10 bilhões no faturamento de aplicativos como Facebook, Instagram e Twitter.
Paralelamente, duas outras frentes podem influenciar a nova regulação de internet no país.
O STF (Supremo Tribunal Federal) fará uma audiência pública em 28 de março para debater dois recursos extraordinários que podem alterar o Marco Civil.
No recurso relatado pelo ministro Dias Toffoli, uma mulher pediu ao Facebook a remoção de um perfil falso que fingia ser ela e ofendia várias pessoas. O Facebook se recusou a agir. Ela pede a derrubada do perfil e indenização por danos morais.
No outro recurso, relatado pelo ministro Luiz Fux, uma professora pediu que o Orkut (que foi comprado pelo Google) tirasse do ar uma comunidade que tinha críticas e ofensas a ela. Ela não foi atendida, e pede ao Google, além da remoção, indenização por danos morais.
Uma decisão em algum desses casos teria repercussão geral e poderia abrir um precedente para responsabilizar civilmente as plataformas por não retirar conteúdo antes de haver ordem judicial. Dentro do governo e no Congresso, há a expectativa de que uma decisão do STF forneça parâmetros que acelerem a discussão da regulação.
Além disso, o ministro Alexandre de Moraes, na presidência do Tribunal Superior Eleitoral, montou um grupo de trabalho com representantes do Google, YouTube, Facebook, Instagram, WhatsApp, TikTok e outros para debater diretrizes para a autorregulação. O relatório com propostas será encaminhado ao Congresso no fim da semana que vem.