Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Francisco Rezek, critica a "mediatização" do trabalho da Corte
Por Lucas Ragazzi
Mineiro de Cristina, Francisco Rezek, 75, foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) no difícil período da transição para a democracia. Ocupou o cargo de chanceler no período da abertura comercial do governo Collor e ainda ocupou um cargo de juiz da Corte Internacional de Justiça. Do alto de sua experiência, ele analisa o momento vivido hoje pelo STF, avalia como negativa o que chama de “mediatização” do trabalho do tribunal, pontua que os desentendimentos entre ministros prejudica a imagem da Justiça e avalia as posições de Ernesto Araújo, nas Relações Exteriores, como semelhantes às de Celso Amorim, mas em sentido inverso.
O senhor acredita que a publicidade causada pela presença da mídia dentro do Supremo tem afetado o comportamento de ministros?
Sim. As sessões do Supremo, como as de todos os tribunais do país, sempre foram abertas ao público; mas a intensa “mediatização” de seu trabalho faz com que seus juízes se sintam todo o tempo expostos à crítica ou à admiração de um número incontável de brasileiros. Esta é uma situação única no mundo e ocorre justamente no país onde a ordem constitucional cumulou de maiores poderes e responsabilidades à Justiça e seu tribunal maior.
Os desentendimentos entre os ministros do STF, que vêm ocorrendo com certa frequência, devem ser encarados como algo natural do exercício da magistratura? Ou são cenários que prejudicam o Judiciário?
Prejudicam gravemente a imagem da Justiça, e a situação atual nos permite avaliar o tamanho gigantesco desse dano. Na medida em que o tribunal se expõe em excesso, e expõe com isto o lado menos sublime, digamos, da humanidade de seus juízes, qualquer pessoa, por desqualificada que seja, entende-se autorizada a pisoteá-lo na mídia eletrônica, quase sempre com uma virulência sem precedentes. Penso que, se o tribunal fosse mais constante na aplicação do direito e mais coeso, enfim, se oferecesse ao país a segurança jurídica que hoje faz tanta falta, isso não aconteceria. A clivagem do Supremo, a sua aparente incapacidade, neste momento, de tomar decisões unânimes (ou quase unânimes), como seria normal e desejável, isso faz com que, no dia seguinte (ou já nas horas seguintes) à decisão tomada por maioria difícil, todos os ministros, os que acertaram e os que erraram, sejam igualmente crucificados pela opinião pública. É uma pena que assim seja.
O STF tem sido alvo constante de ataques, inclusive de outras autoridades. Como o senhor enxerga hoje o papel da Corte e a ocorrência desses ataques?
Por conta da crise de credibilidade em que mergulhou toda a classe política, no Congresso e no governo, a Justiça do Brasil foi levada, não exatamente por desejá-lo, a um protagonismo exagerado. Isso indispôs contra a magistratura e o Ministério Público uma parte expressiva da cidadania, e levou à cólera (e a um transparente desejo de vingança) o que há de mais tosco na própria classe política. Essas coisas não acabam bem, e as cabeças mais lúcidas, nos três lados daquela praça em Brasília, têm consciência disto. Mas não sabem por enquanto, no calor dos acontecimentos, como traçar o caminho da pacificação.
A imprensa também tem sido alvo de ataques, inclusive do presidente da República. Como o senhor tem visto o trabalho da imprensa e essas contestações?
O trabalho da imprensa não é, na verdade, prejudicado pelos ataques ou pela animosidade dos titulares de qualquer função pública. Talvez seja até o contrário: esse confronto, essa troca de asperezas, favorece a imprensa enquanto prejudica os agentes públicos que com ela se indispõem. Mas muitos destes não se dão conta dessa realidade.
Sua atuação enquanto chanceler foi marcada pelas aberturas comerciais e políticas do Brasil com o mundo. Falta isso na atual administração do Itamaraty?
O ano de 1990 foi um marco na história global, por razões de extrema importância e centralidade; e foi também o momento em que o Brasil abandonou seu hermetismo e se abriu ao mundo. Ficou mais fácil ser brasileiro desde então. O que hoje falta no comando da diplomacia brasileira não é exatamente abertura, mas generalidade e bom senso nessa abertura.
O ministro Ernesto Araújo costuma dar declarações polêmicas baseadas em alinhamento ideológico mais à direita. É comum a um chanceler se guiar por crenças ideológicas?
Há muitas coisas incomuns ocorrendo nos últimos tempos. Celso Amorim, o ministro que Lula escolheu nos quadros da carreira, foi o primeiro chanceler a assumir as cores e bandeiras de um partido político e a instalar-se, com armas e bagagens, nos palanques, comícios e trios elétricos da banda governante da época. De certa forma o novo ministro faz o mesmo, em sentido inverso. A história da diplomacia do Brasil tem vivido tempos difíceis.
O que tem achado da postura do governo brasileiro perante a crise na Venezuela?
Sobre esse tema, pelo que eu recordo, ninguém no governo disse impropriedades. O presidente e o chanceler deixaram no ar alguma dúvida quando, interpelados, responderam sem muita clareza sobre suas ideias e planos. Mas eu vejo aí como postura do governo brasileiro a do vice-presidente da República, fiel ao direito internacional e à história diplomática do Brasil. E os outros generais hoje integrantes do governo confirmam a consistência dessa postura. Está acontecendo algo que ninguém teria podido prever, neste momento de confusão e sombra. “Ex stellis lux”, diriam os romanos: a luz vem das estrelas.
Há certa preocupação de que declarações do governo possam estremecer as relações do Brasil com países árabes e até com a China. O senhor compartilha da crença que há esse risco?
Há esse risco, mas o governo não será insensato a ponto de envenenar (por quê, santo Deus?) nossas relações nem com o mundo árabe, nem com a China. A admiração que alguns próximos de Bolsonaro parecem ter por construtores de muros não vai levá-lo a desonrar suas responsabilidades para com o Brasil, para com os interesses nacionais.
Por outro lado, há uma aproximação, talvez sem precedentes, aos Estados Unidos. Esse alinhamento traz mais benefícios ou prejuízos ao Brasil?
Prejuízos não, na medida em que aquilo continua a ser a pátria de Thomas Jefferson e de Lincoln e de Roosevelt: um país amigo e inspirador de tanta coisa boa, a começar por nossa ordem constitucional. Pena que esse namoro tenha esquentado justamente no governo de Donald Trump, um trapalhão irremediável e impenitente. Isto, sob certa ótica, nos expõe ao ridículo, mas não me parece muito grave.
Membros do atual governo brasileiro também têm acumulado críticas à ONU, afirmando que a organização possui cunho “esquerdista”. Qual a sua opinião sobre isso?
Esse foi, muitas vezes, o discurso do Departamento de Estado Americano em relação à ONU, à OIT, à Unesco, a outras organizações internacionais. Sim, é verdade que em nome delas alguns aventureiros dizem e fazem coisas desonestas, quando não simplesmente pândegas. Mas o dever de um país como o nosso é justamente ocupar, no contexto da organização internacional, o espaço que lhe cabe, em favor dos interesses gerais da raça humana. Não temos como reinventar o sistema. É preciso permanecer nele e melhorá-lo no que estiver ao nosso alcance.