Depois de dois anos de hiato, a primeira edição da Virada Cultural pós-pandemia teve alta voltagem política, refletindo o clima conflituoso que impera no Brasil. Protestos contra o presidente Jair Bolsonaro e as ações negacionistas de seu governo em relação ao coronavírus foram constantes nos shows no sábado e no domingo em São Paulo.
Com Folha de São Paulo
Os dois dias de evento, com expectativa de reunir 2 milhões de pessoas em torno dos palcos espalhados pela cidade, foram marcados ainda por episódios de violência, com arrastões, roubos e ao menos seis esfaqueados no Anhangabaú.
Tradicionalmente a Virada atrai protestos, o que se acentua num ano como este, de eleição presidencial centrada em dois candidatos de raiz popular --Bolsonaro, do PL, e Lula, do PT. Como ocorre na área cultural, as manifestações foram unânimes em favor do petista e contra o atual ocupante do Planalto, com gritos de "fora, Bolsonaro" e "olê, Lula".
Na tarde de domingo, xingamentos ao presidente tomaram a Freguesia do Ó no show de Ludmilla, um dos mais aguardados da Virada, quando a cantora interrompeu a primeira canção por problemas técnicos de som.
No encerramento, Ludmilla pediu ao público para fazer o "L" com as mãos, gesto frequente em vários shows, o que no caso dela pode ser interpretado tanto como referência a seu próprio nome ou ao do ex-presidente Lula.
A cantora, no entanto, saiu de cena com o telão do palco se alternando entre as cores vermelho e branco, as mesmas do PT, com quem colaborou no jingle da campanha de Lula. Ainda assim, Ludmilla não citou o nome do candidato ao Planalto do PT.
Não mencionar o nome do ex-presidente tem sido uma tônica de muitos artistas na Virada. Seja por escolha própria, seja por medo de serem acusados de fazer propaganda eleitoral antecipada, como ocorreu com Pabllo Vittar no Lollapalooza. A maioria dos artistas evitaram declarar apoio explícito a Lula.
No show do Planet Hemp, no viaduto do Chá, o mais político do evento, o rapper Marcelo D2 convocou quem se identifica como antifascista a puxar gritos de "Marielle presente", depois de cantar a música "Hip Hop Rio", que fala sobre as belezas e a violência do Rio de Janeiro. "Eles podem matar um, dois, mas não vão matar a ideia", disse o músico.
O rapper BNegão então criticou a operação policial no Complexo da Penha, no Rio, que deixou mais de 20 mortos, e a morte de Genivaldo de Jesus Santos, asfixiado depois de ser trancado numa viatura por agentes da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe.
No refrão da música "Stab", que diz que "nossa vitória não será por acidente", o público respondeu com xingamentos a Bolsonaro. Convidado pelo Planet Hemp, João Gordo, vocalista dos Ratos de Porão e ícone do hardcore de São Paulo, chegou ao palco gritando "fora, Bolsonaro", cantou a música "Crise Geral", de sua banda, e perguntou quem tinha um cigarro de maconha.
No palco montado no viaduto do Chá, o maior do festival no centro da cidade, a secretária de Cultura de São Paulo, Aline Torres, agradecia aos trabalhadores da Virada quando o público puxou xingamentos contra Bolsonaro.
Os gritos ganharam volume logo antes de a cantora Luísa Sonza subir ao palco. "A voz do povo é a voz de Deus", disse a cantora ao menos duas vezes depois dos inúmeros momentos em que a plateia bradava contra o presidente.
Na mesma tarde, o cantor Hariel defendeu a importância do voto. "Não venda seu voto para criminoso, vamos tirar aquele homem de lá", disse.
No sábado, os protestos de tom político começaram mais tímidos pela tarde, mas já eram preponderantes perto do final da noite. No palco Parada Inglesa, na zona norte, a cantora Ana Cañas, depois de cantar "Alucinação", de Belchior, pediu que "a gente saiba votar e mudar essa realidade dura que estamos vivendo". O público respondeu entoando "olê, olê, olá, Lula, Lula".
Na Praça das Artes, na região central da cidade, o rapper Don L disse que esta seria a "Virada da Vacina". Ao fim da música "Éldwood", o rapper pediu que o público fizesse um "L" com a mão, mais uma referência que permite dupla leitura, o nome do rapper ou Lula, e depois declarou "com certeza, se não tivéssemos um presidente genocida, muito mais pessoas estariam aqui com a gente", aludindo aos mortos pela pandemia.
Enquanto tocava a música "Respeito É pra Quem Tem", o rapper MV Bill também puxou coro contra o governo federal. "É para o povo de Brasília escutar." No Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, na zona leste da capital, ele afirmou que não precisa mencionar nem xingar o nome de qualquer político. "Quem acompanha nossa música sabe o que pensamos."
Nos intervalos das apresentações, os gritos políticos serviam de espécie de esquenta para a plateia. No palco do Campo Limpo, na zona sul, no hiato entre Vitão e Xande de Pilares, o público bradava "fora, Bolsonaro" e "Bolsonaro, você acabou com a minha vida".
Na quase uma hora de atraso de Criolo no palco Parada Inglesa, muitos de seus fãs se divertiam e dançavam com xingamentos a Bolsonaro.
Logo no início do show, Criolo engatou uma manifestação, mas desta vez direcionada à própria organização da Virada. "Se você puder entrar no Instagram do padre [Júlio] Lancellotti, vai ser tão interessante", disse, em referência às acusações do padre de que trabalhadores teriam sido explorados pelo evento.
Segundo Lancellotti, moradores em situação de rua recebiam uma marmita e R$ 60 por 12 horas de trabalho na montagem dos palcos do evento, sem qualquer equipamento de proteção. Sobre essa questão, a Prefeitura de São Paulo informou que a montagem é realizada por empresas terceirizadas e que não havia identificado nenhuma irregularidade na produção.
Também na noite de sábado, alargando o escopo das pautas políticas nos shows, Margareth Menezes e Sidney Magal lamentaram a violência contra mulheres no país.
"Não é comum numa sociedade se matar tantas mulheres como no nosso país", disse a cantora, no viaduto do Chá, no centro. "E não é pobreza. Tem lugares que têm pobreza, mas o povo não fica se matando como no Brasil. Precisamos resolver essa questão. Não é só questão de política, mas de comportamento social também. Vamos respeitar o outro. Não dá para não mudar."
Já Magal, na zona norte, antes de tocar "Ciúme", da banda Ultraje a Rigor, declarou que "esse negócio de machão não é comigo, estou fora". Ao terminar a música, pediu pelo fim da violência contra a mulher. A plateia respondeu com aplausos.