Corria os anos setenta e Araguacema, uma cidade do norte de Goiás, hoje estado do Tocantins, pulsava com a energia da juventude e a calma das águas majestosas do Araguaia.  

Posted On Segunda, 31 Março 2025 06:01
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Por Tom Lyra

 

 

O mundo passava por grandes transformações, mas ali, nas manhãs ensolaradas, o tempo seguia seu próprio ritmo, como se quisesse eternizar cada instante de simplicidade e beleza.

 

O vento fresco de junho soprava pelas ruas de terra, carregando consigo o cheiro do café recém-passado e do pão saindo do forno, aromas como o cheiro do doce de jaca da vó Chiquinha que traziam conforto e um sentimento de pertencimento.

 

Caminhar pelas ruas era presenciar a vida fervilhando em uma sinfonia de sons, cheiros e sabores que se misturavam harmoniosamente.

 

Os galos cantavam anunciando o amanhecer, os cachorros latiam em coro, e o ranger das rodas do carro de boi do seu Aureliano se misturava ao trote firme do cavalo altivo do seo Alencar, como se cada som fosse uma nota de uma música que só quem viveu ali poderia reconhecer.

 

 

A venda do Doca e a barbearia do seu Antoin eram pontos de encontro na velha Couto Magalhães, onde as conversas corriam soltas, cheias de histórias e risadas.

 

Na padaria do Domingos Serrotão, o entra e sai era incessante, e o cheiro do pão quentinho se espalhava pelas ruas, despertando memórias que hoje parecem pertencer a um tempo mágico.

 

No mercado velho da Hostílio Sampaio, o barulho seco do Machado de Cabo curto cortando a carne se unia ao estalo das bolas de sinuca no salão do Maneco, onde jogadas certeiras arrancavam aplausos e murmúrios dos espectadores atentos.

 

 

Ao fundo, o sino da igreja badalava, chamando os fiéis para a missa, enquanto as freiras franciscanas caminhavam em direção ao templo com passos cadenciados, como se o tempo fosse uma prece silenciosa.

 

Seu Zacarias, sempre atento, informava as horas do alto de seu atalaia, e a velha Rural do Divino recebia um banho caprichado na beira do rio, preparando-se para mais uma jornada.

 

Seu Inácio já partia para a pescaria, enquanto Zé da Pretinha armava sua ceva de pacus em frente ao Gaivota, na esperança de uma boa e certa colheita .

 

No porto, seu Vavá abastecia o barco, preparando-se para mais um dia de trabalho sob o olhar atento das águas do Araguaia e das gaivotas.

 

 

As vacas lambiam a parede do armazém do Henrique Jacaré, no porto dos homens alguns já se aglomerava para o asseio matinal, enquanto  eu,  Juarilson e Inácinho meninos curiosos, observavamos os caititus no quintal do seu Brás, encantado com a simplicidade e grandiosidade da vida ao mesmo tempo.

 

Dona Madalena ajeitava a venda, enquanto Dona Maria Moia limpava o bucho do boi com destreza, seu ofício transformado em arte.

 

As marteladas do seu Enoque ecoavam ao som do rádio do Pedro da Paulina, e Dona Ivan organizava o bar com o olhar atento. Seo Laranjeira esterilizava as agulhas em água quente para as injeções, a máquina de arroz do seu Pedro Mota já se fazia ouvir, e seu Pedro Pinto me falava de Camões, transportando-me para outros mundos sem que eu precisasse sair dali.

 

 

No bar do Hermes, alguns já degustavam as inúmeras cachaças com raízes, tradição e sabor misturados em goles lentos.

 

Seu Oliveira, sentado em sua cadeira de fibra de macarrão, observava o movimento sem pressa, como quem saboreia cada instante da vida, consciente de que cada momento era precioso.

 

Pelo céu, bandos de periquitos cruzavam a cidade em revoada barulhenta, como se anunciassem que outro dia cheio de histórias estava apenas começando.

 

No rio, o banzeiro cadenciado deixava a superfície branca de espuma, enquanto a canoa subia preguiçosa, desenhando caminhos na água.

 

O fogo subia da coivara de candeia montada na olaria, pintando o horizonte com tons avermelhados, aquecendo não só os tijolos, mas também nossas lembranças.

 

 

Na praça central, meninos brincavam sob a sombra generosa do pé de manga estopa, e na igreja Menonita, os cânticos enchiam o ar de espiritualidade, trazendo paz aos corações.

 

No campinho da Estiva, ao lado do pé de oiti a bola rolava animada, carregando os sonhos da infância, e na esquina, o Benoni vendia seu famoso picolé de murici, refrescando a garotada que corria descalça pela cidade, sem preocupações além de aproveitar cada instante.

 

 

Começava a correria de meninos rumo ao aeroporto, pois o barulho das hélices do DC-10 da VASP já anunciava o pouso, trazendo novidades e promessas de um mundo que parecia tão distante, mas que chegava ali através das páginas da revista Cruzeiro.

 

Tudo seguia em perfeita harmonia, um equilíbrio frágil e belo que só percebemos plenamente quando nos resta apenas a lembrança.

 

A minha aldeia pulsava em ritmo próprio, e assim vivíamos, atravessando os dias que se tornariam anos inesquecíveis, sem saber que estávamos escrevendo a história das nossas vidas.

 

Hoje, sentado aqui em uma manhã de domingo, revisito essas memórias com o coração apertado, sentindo a saudade que dói, mas também aquece. Porque Araguacema nunca sai de dentro da gente.

 

Tom Lyra

 

 

 

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