Inquérito secreto do STF é ferramenta do arbítrio

Posted On Quarta, 20 Março 2019 13:11
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Por Josias de Souza

 

O contrário da aversão primária ao Supremo Tribunal Federal é o entusiasmo ingênuo que aceita todas as presunções da Suprema Corte a seu próprio respeito. Isso inclui concordar com a tese segundo a qual Dias Toffoli tem uma missão na Terra de inspiração divina e, portanto, inquestionável. "Pode espernear à vontade, pode criticar à vontade", disse Alexandre de Moraes, relator do inquérito secreto aberto por Toffoli para investigar os inimigos da Corte. "Quem interpreta o regimento do Supremo é o Supremo. O presidente abriu, o regimento autoriza, o regimento foi recepcionado com força de lei e nós vamos prosseguir."

 

O inquérito sigiloso aberto na semana passada por Toffoli visa estancar uma onda de fake news que engolfa o Supremo nas redes, identificar autores de ameaças virtuais aos ministros e seus familiares, responsabilizar procuradores da Lava Jato por supostos insultos e punir auditores do Fisco acusados de constranger magistrados com fiscalizações imotivadas. Se o Brasil fosse regido pela lógica, Toffoli requisitaria a abertura de inquérito à Procuradoria-Geral da República. Ele preferiu, porém, agir "de ofício", por conta própria. Escorou-se no artigo 43 do regimento interno do Supremo, que vai reproduzido abaixo.

Qualquer criança minimamente alfabetizada percebe que o artigo que Moraes diz ter sido corretamente interpretado por Toffoli prevê que o presidente do Supremo poderia ter instaurado inquérito se o crime a ser apurado tivesse ocorrido "na sede ou dependência do tribunal". Como não foi isso que se passou, Toffoli tem dificuldades para garantir a adesão incondicional à sua gambiarra jurídica até mesmo entre os colegas de trabalho. Uma banda do Supremo faz uma oposição muda. Outra banda começa a fazer barulho.

 

Marco Aurélio Mello levou os lábios ao trombone: "O que ocorre quando nos vem um contexto que sinaliza prática criminosa? Nós oficiamos o procurador-geral da República, nós oficiamos o estado-acusador. Somos estado-julgador e devemos manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de persecução criminal". Luiz Fux também ergueu a voz: "Evidentemente que eu respeito a opinião dele (Toffoli), mas acho que ele vai mandar para a procuradora-geral (Raquel Dodge). Não tem como não mandar para a PGR. E não tem como inibir a PGR de trazer novos elementos."

 

É até natural que certas togas, embevecidas por uma supremacia que exclui o componente da dúvida, desenvolvam seus mitos de excepcionalidade. Mas é inédita na história da Corte essa pretensão de Dias Toffoli de ser uma potência moral que só deve contas à sua própria noção de superioridade e seu indiscutível destino moralizador. Inédita também é a fidelidade com que Alexandre de Morais se dispõe a emprestar sua mão de obra e seu gênio jurídico ao mito de onipotência do presidente do Supremo.

 

"Não se pode permitir, em um país democrático como Brasil, em que as instituições funcionam livremente há 30 anos, que, porque você não gosta de uma decisão, você prega o fechamento da instituição republicana, você prega a morte de ministros, morte de familiares", declarou Moraes. "Isso extrapolou, como bem disse o ministro Celso de Mello, o nosso decano, isso extrapolou a liberdade de expressão. A liberdade de expressão não comporta quebra da normalidade democrática e discurso de ódio". O ministro está certo, muito certo, certíssimo. Admita-se que as sombras escondam elementos que justifiquem a investigação. Isso não autoriza o Supremo a perder o recato que lhe resta.

 

O que assusta não é o desejo de apurar ou o sucesso que o inquérito secreto obteve entre os entusiastas ingênuos das presunções do Supremo sobre si mesmo. A busca da verdade pelo menos é uma causa defensável. Pode-se discutir como adultos as razões da apuração, os interesses escondidos atrás do inquérito e os alvos a serem perscrutados. O que assusta de verdade é quando o presidente e um pedaço da Suprema Corte acreditam mesmo que sua missão especial na Terra lhes dá o direito de selecionar desafetos em segredo, abrir contra eles investigação sigilosa e comandar o inquérito antes de julgá-lo.

 

Uma parte do Supremo ainda não notou. Mas esgotou-se aquele tempo em que a sociedade concedia autorização tácita para que as supremas togas fossem o que imaginavam ser e cumprissem sua missão divina, mesmo que a Justiça Eleitoral virasse, num julgamento de placar tão apertado quanto um 6 a 5, o novo foro privilegiado para salvar larápios. A transparência de copo de requeijão e os lugares-comuns da retórica de Alexandre de Moraes —"Não existe democracia sem independência do Poder Judiciário, isso vai ser investigado a fundo"— não livrarão o Supremo de ser colocado permanentemente em xeque.

Há algo de sádico na maneira pela qual os próprios ministros do Supremo se colocam na berlinda com suas sentenças contraditórias, seus pedidos de vista protelatórios, seus réus de estimação, sua política de celas abertas… Mas esse sadismo não é menos necessário para acordar a cidadania de sua letargia do que para a educação democrática dos magistrados. Decisões do Supremo, como se sabe, devem ser cumpridas. Mas o sacrossanto direito à crítica é inalienável.

 

Há ameaças na rede? Procuradores caluniaram? Auditores exorbitaram? Pois que sejam abertos os inquéritos. Que corram sob a luz do Sol, pelos canais competentes, sem a necessidade de esperneios. Inquérito secreto é ferramenta imprópria, um pé de cabra do arbítrio.