Estadão - Notas & Informações
Por sua natureza, a atividade legislativa requer calma e reflexão. A função do Congresso não é dar soluções imediatistas aos problemas do País. A lei deve constituir uma resposta madura, apta a permanecer no tempo – o que exige serenidade e estudo. Logicamente, isso tudo representa um sério desafio para o Legislativo, que se vê muitas vezes instado pela sociedade a apresentar medidas instantâneas.
Agora, o Congresso tem precisado enfrentar, em relação aos tempos da atividade parlamentar, um novo desafio, criado pelo próprio presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL). Não é a pressão da população que tem levado à precipitação dos trabalhos legislativos. A Presidência da Câmara, que deveria ser a primeira a preservar a atividade parlamentar, tem promovido um inconstitucional atropelo na tramitação das propostas legislativas.
Como revelou o Estado, Arthur Lira (PP-AL) não apenas tem relevado o estrito cumprimento do Regimento Interno da Câmara dos Deputados – valendo-se de brechas para impor sua pauta –, como já colocou em votação projetos cuja versão final era desconhecida pelos próprios deputados. Trata-se de ponto fundamental. Não há como votar um texto sem que os parlamentares saibam o conteúdo desse texto.
No dia 14 de outubro, por exemplo, o relatório final da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 5/21, que altera regras sobre o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), só foi divulgado após o início da sessão de votação. O projeto terminou sendo retirado da pauta, mas o intento abusivo ficou evidente.
O atropelo não tem relação em si com o conteúdo da proposta legislativa. No caso, a PEC 5/21 tem pontos muito positivos, que podem promover maior eficiência do CNMP. De toda forma, é evidente que nenhuma lei pode ser votada sem que se saiba o que está sendo votado. Ainda mais se for, como era o caso, uma Emenda Constitucional.
No fim das contas, esse modo de proceder prejudica as boas propostas, suscitando desnecessárias suspeitas sobre seu conteúdo e sua motivação. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a tramitação da reforma da Lei de Improbidade. Era um projeto necessário, que veio estabelecer um patamar mínimo de segurança jurídica em área especialmente sensível, com implicações diretas sobre toda a administração pública e, por consequência, sobre toda a sociedade. No entanto, a tramitação na Câmara foi atabalhoada, sem votação do relatório pela comissão especial e com a decretação de um inoportuno regime de urgência.
Episódio especialmente grave foi a votação na Câmara do projeto que altera o Imposto de Renda (IR). No momento em que foi votado, o texto final da reforma do IR era desconhecido pelos parlamentares. Não havia sido divulgado. Ou seja, os parlamentares votaram um texto sem saber o que ele representava para o Estado e para os cidadãos.
A confirmar o absurdo da situação, depois da votação, foram divulgados os efeitos da proposta sobre as contas públicas. Surpresos, os deputados descobriram, então, que a reforma do IR aprovada na Câmara resultava em perda de receita de R$ 21,8 bilhões para a União e de R$ 19,3 bilhões para Estados e municípios.
Seja qual for o motivo dessa inversão – tem-se a votação e só depois o texto “aprovado” é divulgado –, ela é radicalmente inconstitucional e antidemocrática. Não há a rigor votação de uma matéria se a matéria nem sequer foi publicamente definida. É realmente estranho que, num regime democrático, seja necessário recordar esse requisito.
Além de respeitar a ordem mínima – votação depois da divulgação do texto –, é necessário restabelecer o normal funcionamento das comissões no Congresso, que têm um papel profundamente democrático. É nas comissões que os temas são debatidos, amadurecidos e questionados, sendo um importante âmbito de transparência. A pandemia exigiu abreviar e simplificar alguns ritos legislativos. Mas regras para tempos excepcionais não podem perder seu caráter igualmente excepcional. A sociedade precisa do Legislativo funcionando normalmente.
Por Almir Pazzianotto Pinto
Desde a Proclamação da República, em 15/11/1889, o Brasil conheceu 38 presidentes. O primeiro foi o marechal Deodoro da Fonseca, herói da Guerra do Paraguai. Tomou posse após comandar as tropas que depuseram o imperador Dom Pedro II, de quem era amigo e admirador.
Em 23 de julho de 1840, aos 15 anos de idade, Dom Pedro II assumiu o exercício das funções majestáticas, exercidas de forma magnânima e serena até 15 de novembro de 1889. Foram 49 anos, 4 meses e 115 dias sob a Constituição de 25 de março de 1824, emendada uma única vez.
Sobre o reinado de Dom Pedro II, sintetizou Pandiá Calógeras: “Grande e nobre fora a tarefa cumprida pelo Império. Estava o Brasil sob ameaça de desintegração por fatores múltiplos e, entretanto, se manteve unido. Lutas locais duraram cerca de 20 anos, e, entretanto, foram dominadas dentro da união” (Formação Histórica do Brasil, Companhia Editora Nacional, SP, 1967, página 298).
O golpe inspirou célebre crônica de Aristides Lobo, publicada em São Paulo pelo Diário Popular de 18/11/1889, onde dizia: “Por ora, a cor do governo é puramente militar, e deveria ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam, sinceramente, estar vendo uma parada”.
A história da República é o registro de golpes, alianças, traições, mortes e eleições. Cumpriram integralmente mandato adquirido nas urnas os presidentes Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves, Hermes da Fonseca, Venceslau Brás, Arthur Bernardes, Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Dilma Rousseff exerceu por inteiro o primeiro, mas foi deposta no segundo. Generais presidentes, não eleitos, foram Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo. O Brasil passou pelas ditaduras do marechal Floriano Peixoto (1891-1894), de Getúlio Vargas (1930-1945), do regime militar (1964-1985). No exercício do mandato morreram Afonso Pena, Getúlio Vargas e Costa e Silva. Antes da posse faleceram Rodrigues Alves, reeleito em 1918, e Tancredo Neves. Juntas militares tomaram o poder em 1930, 1964 e 1969. Esta última substituiu o presidente Costa e Silva, afastado por doença, e impediu, pela violência, a posse do vice-presidente Pedro Aleixo.
Getúlio Vargas assumiu a chefia do governo provisório em novembro de 1930, após derrubar Washington Luís. Foi eleito pelo Congresso em 1934, deu o golpe em 10/11/1937, até ser deposto em 29/10/1945. Retornou pelo voto direto em 1951 e se suicidou em 1954. Jânio Quadros assumiu o governo em 31 de janeiro, para renunciar em 25 de agosto de 1961. Carlos Luz governou quatro dias como presidente da Câmara dos Deputados, ao ocupar vaga aberta pelo vice-presidente Café Filho. Ambos foram depostos pelo ministro da Guerra, general Teixeira Lott, garantindo a posse de Juscelino Kubitschek.
De 1891 até 2021 o Brasil conheceu sete Constituições. A mais longeva, a de 1891. Durou 34 anos e recebeu uma única emenda. A Constituição de 1988 completará 33 anos em 5 de outubro, emendada mais de uma centena de vezes e sob o ataque de outras que lhe abalam a credibilidade. A de 1934 resistiu menos de quatro anos. Desde a troca do um mil réis imperial pelo cruzeiro republicano, em 1942, tivemos 12 padrões monetários. No governo do presidente Sarney foram aprovados quatro planos econômicos, dois no governo Fernando Collor e o último no governo Itamar Franco.
A inflação tem sido o câncer no fígado da economia. Após altas e baixas, chegou a 1.792,90% em 1989. O acumulado no período de 164 anos, entre 1829 e 1993, foi da ordem de quase 7 quinquilhões (Andima, Séries Históricas, Inflação, RJ, s/d).
A população, que era de 13,33 milhões em 1890, inchou em ritmo acelerado até alcançar a marca atual de 215 milhões. Cresceu, mas não melhorou. O desenvolvimento econômico se revelou insuficiente para assegurar alfabetização, educação, politização, saúde, segurança e razoável padrão de vida ao povo. São 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados e 50 milhões na linha de miséria. É o país com uma das maiores desigualdades de renda do mundo. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nos coloca na 75.ª posição, abaixo de Cuba, Uruguai, Chile e Argentina.
Representantes da inteligência política debitam o fracasso ao presidencialismo. Convencidos, porém, da inviabilidade de modelo clássico de parlamentarismo, assumem a defesa de fantasiosa superioridade do semipresidencialismo, neologismo indefinível e vazio de significado. O problema não é o presidencialismo. Está na caótica organização partidária, na corrupção, no sistema eleitoral. Como revela a História, vivem da barganha de cargos e de votos, do populismo demagógico, da ambição insaciável, da estúpida mediocridade.
*ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO
A Câmara dos Deputados aprovou no dia 9 passado o texto-base do Projeto de Lei Complementar 112/2021, que institui o Código de Processo Eleitoral
Notas & Informações - Estadão
A pretexto de reunir em um só diploma legal uma miríade de normas esparsas que regulamentam desde a divulgação de pesquisas eleitorais até a prestação de contas dos partidos políticos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o projeto, relatado pela deputada Margarete Coelho (PP-PI), virou um calhamaço de mais de 900 artigos que passou longe, muito longe, da tramitação responsável que um tema dessa envergadura requer.
A afoiteza da tramitação do projeto na Câmara, que custou tão caro ao bom debate democrático, pode ser explicada por duas razões, uma umbilicalmente ligada à outra. A aprovação de uma nova legislação eleitoral que afrouxasse os mecanismos de responsabilização dos parlamentares e dos partidos políticos foi uma promessa feita pelo deputado Arthur Lira (PP-AL) a seus pares durante a campanha que, por fim, o alçou à presidência da Casa, em fevereiro deste ano. E Lira só a fez, por óbvio, porque conhece muito bem o seu eleitorado e sabe que a matéria tem o apoio da maioria das legendas. Basta ver que o regime de urgência para tramitação do Código de Processo Eleitoral foi aprovado por 322 votos a 139. Já o texto-base, por margem ainda mais folgada: 378 votos a 80.
Os deputados agora analisam os chamados destaques, alterações pontuais que são propostas ao projeto original. Prevê-se que a Câmara vote estes destaques no decorrer da próxima semana, quando, ao fim, o projeto seguirá para deliberação do Senado. Essas duas próximas etapas são fundamentais para o resguardo do melhor interesse público. O novo Código de Processo Eleitoral tem muitos pontos a serem corrigidos, ou até mesmo eliminados do projeto, seja pelos próprios deputados, durante a votação dos destaques, seja pela revisão da Câmara Alta.
Um dos pontos mais nocivos ao interesse público, sem dúvida, é a autonomia inaudita que os partidos políticos terão sobre os bilionários recursos do Fundo Partidário, que nem sequer deveria existir. O texto-base não só submete o uso de recursos públicos à absoluta discricionariedade das lideranças partidárias, como dificulta, e muito, a análise da prestação de contas pelo TSE. Com o dinheiro do Fundo Partidário, por exemplo, partidos políticos poderão comprar bens móveis e imóveis, além de realizar “outros gastos de interesse partidário, conforme deliberação do partido”. Vago como se lê, esse dispositivo pode significar qualquer coisa. O que, afinal, é de “interesse partidário”. E quem, ao fim e ao cabo, diz que é? Os próprios interessados.
Não bastasse a liberdade para gastar os bilhões do Fundo Partidário, a prestação de contas à Justiça Eleitoral também sofrerá enormes reveses caso o Código de Processo Eleitoral entre em vigor tal como consta no texto-base. Os deputados reduziram de cinco para dois anos o prazo do TSE para analisar as contas partidárias, “sob pena de extinção do processo”. A bem da verdade, o TSE já falha miseravelmente em cumprir o prazo de cinco anos. A redução para dois anos significa, portanto, tornar letra morta a obrigatoriedade de prestação de contas pelos partidos políticos.
O Código de Processo Eleitoral também representa um abrandamento da Lei da Ficha Limpa. O prazo de inelegibilidade dos condenados com base na lei permanece em oito anos, mas o tempo passa a ser contado a partir da data da condenação, e não mais do término do cumprimento da pena.
Um dos poucos pontos positivos da nova legislação eleitoral, a quarentena de cinco anos para que militares das Forças Armadas e das Polícias Militares, promotores de Justiça e juízes possam disputar eleições, a partir do pleito de 2026, foi derrubado em um dos destaques já votados. É de suma importância manter cargos de Estado a salvo de interesses de natureza político-eleitorais.
Para valer em 2022, o projeto precisa ser aprovado pelo Senado e sancionado por Jair Bolsonaro até outubro. Talvez não haja tempo para isso. O prazo exíguo é aliado da sociedade, mas será muito importante que o projeto não entre em vigor tal como está não pelo decurso do prazo, mas pela ação do Senado como Casa revisora.
CRISTOVAM BUARQUE - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação
Durante 350 anos, os estrangeiros se espantaram com a escravidão e com o fato de os brasileiros não se espantarem com o tratamento dado aos escravos. Se um visitante comentasse o assunto, o brasileiro branco diria: “São negros”. Passados 133 anos da abolição, se algum estrangeiro comenta a má educação recebida por alunos das escolas públicas, ouve como resposta: “São pobres”.
Espanta os turistas como em nossas praias convivem banhistas ao lado de trabalhadores servindo sob o sol e sobre a areia, vendendo o que a moderna indústria oferece. Se o visitante estrangeiro disser “vocês ainda mantém privilégios do tempo da escravidão”, os brasileiros respondem: “Mas precisam desse trabalho para sobreviver”. Os escravos também. Ao voltar do século 19 ao século 21, o visitante pensaria que a escravidão continua como se as algemas fossem invisíveis.
A ideia de que a escola deve ter a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da criança, espanta tanto quanto no século 19 espantava a ideia de negros e brancos terem os mesmos direitos. Espantaria quem dissesse que os resquícios da escravidão decorrem da desigualdade no acesso à educação.
Nós, brasileiros, não nos espantamos que os republicanos tenham escrito lema, na bandeira que desenharam, sabendo que naquela época 6,5 milhões de adultos, 65% da população, não sabiam ler, nem mesmo o “Ordem e Progresso”. Aos estrangeiros, causa espanto que, 132 anos depois, temos 12 milhões de adultos que não sabem ler a própria bandeira. O espanto só chega para quem tem olhos para vê-lo, percepção para senti-lo como algo estranho.
Qualquer pessoa, salvo os próprios brasileiros, se espantaria ao ver a notícia de que o Brasil é o maior exportador de alimentos do mundo, seguida da informação de que dezenas de milhões passam fome todos os dias. Ainda mais ao ver, no mesmo noticiário da televisão, ao lado de famílias com fome, publicidade de competições entre candidatos a chefes de cozinha. Espanta que, apesar de milhões de desempregados sem salários, os empregados e patrões com altos salários recebem vales para pagar alimentação nos mais caros restaurantes, com dinheiro de impostos que os desempregados também pagam. Os estrangeiros se espantam quando sabem que os encarregados de zelar pelos interesses do povo — parlamentares, governantes, juízes, inclusive servidores da rede pública — usam seguro de saúde privada pago pelo setor público como forma de se proteger da má qualidade dos serviços que oferecem ao público.
Percebemos a injustiça de jovens que fazem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em condições precárias por falta de aulas durante a pandemia, mas espanta a falta de espanto diante de pelo menos 80 milhões de brasileiros impedidos de se inscrever, porque ficaram para trás, sem um ensino médio minimamente satisfatório. Espanta a preocupação maior para entrar na universidade do que para abolir o analfabetismo. O Brasil que espantava por não se espantar com a escravidão, agora espanta por não se espantar com a imensa maioria de sua população analfabeta para o mundo contemporâneo: sem falar um idioma estrangeiro, sem saber as bases da ciência, da matemática, conhecer os problemas do mundo contemporâneo e sem um ofício que lhe permita emprego e renda.
Os estrangeiros se espantam que o Brasil seja capaz de contabilizar 100 milhões de votos em poucas horas, e esses votos elejam presidente contrário à democracia que o elegeu. Espanta que o espetáculo tecnológico da contagem eletrônica dos votos não garanta a posse do eleito, se militares e milícias não estiverem de acordo com o resultado; também que o pagamento de contas pelo sistema Pix fique prejudicado pelo clima de violência e criminalidade.
Parece que é permanente e ilimitada a capacidade brasileira de espantar ao mundo, sem se espantar aqui dentro. Nesta semana, os brasileiros comemoram o último 7 de Setembro de seu segundo centenário espantando o mundo pelas realizações de nosso desenvolvimento e por nossa negação em distribuir os resultados do que realizamos, caindo em um abismo histórico. Por falta de espanto com a concentração e privilégios, não fazemos a distribuição necessária para construir um futuro com coesão e rumo, vitalidade nacional e inclusão social.
Por Ricardo Lewandowski
Na Roma antiga existia uma lei segundo a qual nenhum general poderia atravessar, acompanhado das respectivas tropas, o rio Rubicão, que demarcava ao norte a fronteira com a província da Gália, hoje correspondente aos territórios da França, Bélgica, Suíça e de partes da Alemanha e da Itália.
Em 49 a.C., o general romano Júlio César, após derrotar uma encarniçada rebelião de tribos gaulesas chefiadas pelo lendário guerreiro Vercingetórix, ao término de demorada campanha transpôs o referido curso d’água à frente das legiões que comandava, pronunciando a célebre frase: “A sorte está lançada”.
A ousadia do gesto pegou seus concidadãos de surpresa, permitindo que Júlio César empalmasse o poder político, instaurando uma ditadura. Cerca de cinco anos depois, foi assassinado a punhaladas por adversários políticos, dentre os quais seu filho adotivo Marco Júnio Bruto, numa cena imortalizada pelo dramaturgo inglês William Shakespeare.
O episódio revela, com exemplar didatismo, que as distintas civilizações sempre adotaram, com maior ou menor sucesso, regras preventivas para impedir a usurpação do poder legítimo pela força, apontando para as severas consequências às quais se sujeitam os transgressores.
No Brasil, como reação ao regime autoritário instalado no passado ainda próximo, a Constituição de 1988 estabeleceu, no capítulo relativo aos direitos e garantias fundamentais, que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”.
O projeto de lei há pouco aprovado pelo Parlamento brasileiro, que revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos autônomos, inserindo-os no Código Penal, com destaque para a conduta de subverter as instituições vigentes, “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Outro comportamento delituoso corresponde ao golpe de Estado, caracterizado como “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ambos os ilícitos são sancionados com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência.
No plano externo, o Tratado de Roma, ao qual o Brasil recentemente aderiu e que criou o Tribunal Penal Internacional, tipificou como crime contra a humanidade, submetido à sua jurisdição, o “ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil”, mediante a prática de homicídio, tortura, prisão, desaparecimento forçado ou “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”.
E aqui cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a “defesa da lei e da ordem”, quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes.
A propósito, o Código Penal Militar estabelece, no artigo 38, parágrafo 2º, que “se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior”.
Esse mesmo entendimento foi incorporado ao direito internacional, a partir dos julgamentos realizados pelo tribunal de Nuremberg, instituído em 1945, para julgar criminosos de guerra. Como se vê, pode ser alto o preço a pagar por aqueles que se dispõem a transpassar o Rubicão.
Por Ricardo Lewandowski, é minisatro do Supremo Tribunal Federal